Cartaz de 1979 conclamando os trabalhadores do Brasil a receberem os companheiros anistiados. |
O professor Vladimir Safatle que escreve nas terças na Folha gosta muito de criticar as posições do jornal. O debate agora gira em torno da lei da anistia e pode ser resumido no último parágrafo do artigo que ele escreveu hoje:
É compreensível que o editorialista queira lutar para que o Brasil não vire prisioneiro de seu passado, alegando que tais fatos são "página virada". Mas há aqueles que acreditam que só nos livraremos do passado ao encararmos nossas piores páginas mais uma vez.
O debate é exatamente esse, temos que virar a página da história ou vamos remoer o passado alimentando os ressentimentos?
Não adianta ficarmos comparando nossa ditadura (ou ditabranda) com as do Chile e da Argentina que foram muito mais sanguinárias.
O universo de pessoas envolvidas é hoje muito pequeno (minúsculo, microscópico), o Brasil tem que ir além, essa discussão tinha de ter sido feita no final da década de 80 ou início de 90.
Agora é tarde e o trem da história já passou.
Abaixo o artigo de Vladimir Safatle
Vladimir Safatle
Respeitar a Lei da Anistia?
Editorial de ontem desta Folha,"Respeito à Anistia", recoloca no debate público questões importantes sobre crimes contra a humanidade ocorridos na ditadura. A posição defendida pelo editorial, embora consistente e bem argumentada, é passível de crítica.
Esta Folha tem um histórico maior na luta contra o fim da ditadura. Por isso, é certo que ela é o melhor espaço para que se realize um debate dessa natureza.
Criticando a decisão do Ministério Público Federal em denunciar o coronel Sebastião Curió por sequestro de membros da guerrilha do Araguaia, o editorialista recorre à decisão do STF sobre os efeitos da Lei da Anistia. Ele ainda critica o "raciocínio tortuoso" dos membros do Ministério Público que alegam que tais sequestros, perpetrados nos anos 70, não prescreveram, já que os corpos nunca foram encontrados.
Isso nada tem de "peça de ficção". Argumento similar foi usado no Chile, obrigando a Justiça a reabrir processos ligados a desaparecidos políticos. Tal argumento consiste em lembrar que militares sabem em que lugares tais corpos foram enterrados, tanto que dificultam sistematicamente toda investigação. Eles continuam, assim, cometendo crime de ocultação de cadáver ou de sequestro, pois tecnicamente tais sujeitos se encontram nas mãos do Exército.
Por outro lado, a decisão do STF é ilegal sob dois aspectos. Primeiro, há um conflito de soberania. O Brasil, ao reconhecer a existência do conceito de "crime contra a humanidade", até aceitando a jurisprudência de um Tribunal Penal Internacional, abriu mão de parte de sua soberania jurídica em prol de uma ideia substantiva de universalidade de direitos.
Os acordos políticos nacionais não podem estar acima da defesa incondicional dos cidadãos contra Estados que torturam, sequestram, assassinam opositores, escondem cadáveres e estupram. Isso vale tanto no Brasil quanto em Cuba, na França ou em quaisquer outros lugares.
Vale ainda lembrar que a redação da Lei da Anistia em seu parágrafo dois é clara: "Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal".
Membros da luta armada envolvidos em sequestros e mortes não foram libertados, mas tiveram diminuição das penas. Os envolvidos em terrorismo de Estado e sequestro nem sequer foram julgados. O que demonstra que a anistia só valeu para um lado -aberração que o STF perpetuou.
É compreensível que o editorialista queira lutar para que o Brasil não vire prisioneiro de seu passado, alegando que tais fatos são "página virada". Mas há aqueles que acreditam que só nos livraremos do passado ao encararmos nossas piores páginas mais uma vez.
VLADIMIR SAFATLE escreve às terças-feiras nesta coluna.
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