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Foto: Obama, Cameron e Helle Thorning-Schmidt


segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Governos Eletrônicos


Este blogueiro não é contra o uso de cartões eletrônicos. Muito pelo contrário, eles racionalizam os débitos, mostram exatamente as despesas realizadas, mas tudo isso deve estar on line e a sociedade deve ficar de olho. É sempre importante saber como funcionam os cartões eletrônicos em outros lugares e a entrevista do diretor do curso de economia de São Paulo da FGV, Marcos Fernandes Gonçalves diz, em entrevista hoje na Folha, que os cartões corporativos são parte de uma "doença mais grave", que é a falta de fiscalização e de informação sobre o Estado brasileiro. O autor de "Ética e Economia" (Campus) e "A Economia Política da Corrupção do Brasil" (Senac) estuda "governos eletrônicos". Por isso avalia o uso dos cartões no mundo.


FOLHA - Cartão corporativo é ruim?



MARCOS FERNANDES GONÇALVES - Não. Cartão corporativo é bom, seja numa empresa ou no governo. É muito mais fácil executar pagamentos menores por meio de cartão de crédito. Além disso, gera mais transparência. Anos atrás, dois executivos ingleses de uma empresa gastaram uma quantidade enorme num jantar. Foram demitidos assim que o gasto foi apontado. Eu vejo o escândalo dos cartões como uma manifestação epidérmica de uma doença mais grave, que é o fato de o Estado brasileiro estar fora de controle, pela falta de fiscalização e informações. A "viúva", o Tesouro Nacional, é a última a saber. Por outro lado, esse escândalo mostra confusões que brotaram na opinião pública.


FOLHA - Quais?

GONÇALVES - O cartão corporativo não é culpado pela fraude, ele é a solução para combater esse tipo de corrupção, porque gera automaticamente a transparência e acaba com essa história de nota, recibo etc. Todo mundo sabe que é fácil pegar, por exemplo, um recibo superfaturado em um táxi, uma prática imoral. Se é cartão de crédito, aparece onde gastou e o valor exato. Ao surgir uma conta estranha, fiscaliza-se. Não por acaso, o escândalo só veio à tona porque os gastos ficaram registrados. Mostrou a importância de um instrumento como o Portal da Transparência. Mas há confusão sobre o que é um escândalo e o que não é. No caso de um jantar com uma comitiva chinesa, por exemplo, gastar R$ 500 ou R$ 1.000 é normal. Você está recebendo pessoas que representam um governo estrangeiro. O ponto crítico é o gasto na mesa de bilhar, os saques altíssimos, os gastos sigilosos que ninguém tem idéia do que foi feito ou ter um só cartão gastando R$ 500 mil por ano. Aí é que estão os absurdos. Os saques são um ponto crucial, porque, nesse caso, o cartão pode ser fonte para caixa dois. De grão em grão a galinha enche o papo, de dez em dez reais se faz 1 milhão.


FOLHA - O que outros países que usam cartão podem ensinar?

GONÇALVES - A primeira questão é fazer um manual claro sobre como usar o cartão. Depois, obrigar os funcionários que vão usar a assinar um termo de compromisso onde está dito que eles vão obedecer o que está no código e que sabem que, se não cumprirem, podem ser processados judicialmente. Também é preciso esclarecer os usos e, para isso, aulas são dadas a quem tem o cartão. Se fosse assim no Brasil, ninguém poderia dizer que não sabia, que não leu o manual. Mas o governo não tem ainda um manual. Há países onde códigos de conduta detalham como usar o cartão. Os melhores exemplos são Austrália e Nova Zelândia, que estão anos-luz à frente.


FOLHA - Por quê?

GONÇALVES - Nos anos 90, eles fizeram grandes reformas no setor público, informatizando praticamente tudo, o que gerou um subproduto fundamental, mais transparência e controle sobre todos os níveis do governo. O mais importante é ver como os gastos são executados. Eles criaram governos eletrônicos. Na Austrália, todos os protocolos do governo são informatizados, os processos do Judiciário circulam virtualmente de departamento para departamento. Há até mesmo informações dizendo se o funcionário público está aparecendo no trabalho. Isso gera democracia eletrônica, que não é só apertar um número na urna, mas democracia como melhor sistema de controle sobre os burocratas e os políticos.


FOLHA - Isso ocorre nos cartões?

GONÇALVES - Sim. As faturas são públicas e on-line. A compra do funcionário vai automaticamente para a internet. Nesses países, quem tem cartão está no primeiro e no segundo escalão, ou seja, ministros, assessores, mas também o equivalente a governadores e alguns burocratas de ministérios que podem fazer compras específicas. O manual de conduta deixa claro como e onde pode ser usado: viagens, jantares, alimentação, combustível e gastos inesperados. Só que existem tetos fixados para gastos e para saques em dinheiro, que varia entre regiões. Outro ponto é que os gastos inesperados ou pequenos gastos não dão problema, pois o funcionário é obrigado a provar imediatamente por que o gasto foi inesperado e isso também é publicado na internet. Quebrou um carro? Prove. Teve problema de saúde? Prove.


FOLHA - Por que o mecanismo é eficiente na Austrália?

GONÇALVES - Porque o superior é obrigado a ficar de olho. Um funcionário que responde ao superior só pode realizar saques com cartão se autorizado. Mais do que isso, se um subordinado faz um gasto indevido, o superior também é culpado. Uma regra onde o chefe é o direto responsável pelas ações do chefiado cria incentivos naturais ao controle. Nesses países, está na lei que o chefe é o imediato responsável juridicamente pelos gastos. No ministério australiano, se um chefe-de-gabinete faz um gasto indevido, o responsável é o ministro. O burocrata abaixo do chefe-de-gabinete faz gasto indevido? O responsável é o chefe-de-gabinete. É claro que o subalterno também é punido, mas, no limite, gastos pouco razoáveis de um ministro podem derrubar até mesmo o primeiro-ministro. Como resultado, o superior fica no cangote do funcionário; está todo mundo com o rabo preso, no bom sentido.


FOLHA - Há outros países que estão mais avançados no uso do cartão ?

GONÇALVES - A experiência dos outros países é mais recente. A França tem um bom sistema, com manual e limite para saques e gastos. Os cartões estão nas mãos do presidente, do primeiro-ministro e dos ministros, além de alguns assessores. Mas não tem magia. Lá a informação é totalmente pública, na internet. A ex-primeira-dama Cecília Sarkozy abriu mão do cartão não porque fez gastos indecentes, mas porque a vida privada dela ficava explicitada. Ela fez uma escolha. Eu pesquisei cartões corporativos exaustivamente e podem até existir outros países que usem, mas não divulgam as informações na internet, um pressuposto básico do sistema.


FOLHA - Nos países citados, o controle como o feito pela CGU no Brasil é importante?

GONÇALVES - Sim, mas a questão é que não é o único controle. Austrália e Nova Zelândia têm auditoria anual das contas de todo o governo, mas os ministérios fazem auditorias internas muito sérias. O controle francês é feito por auditoria interna nos três Poderes e uma auditoria externa, feita por uma espécie de Tribunal de Contas. É interessante que Tribunal de Contas como conhecemos só existe no Brasil e é uma boa idéia, só que mal utilizada. Em São Paulo, é complicado o governador indicar conselheiros para o TCE. Agora, o Tribunal de Contas da União faz um trabalho sério.


FOLHA - Como controlar no Brasil?

GONÇALVES - Sou a favor de auditoria de empresas privadas no governo. No caso dos cartões, se quisesse, o governo poderia fazer um estudo para calcular quanto se gasta em média em uma viagem, com hotel, alimentação. Poderia fazer por cidade brasileira ou média nacional. Depois, um cálculo para regulamentar saques para gastos imprevistos, que nunca passa de 20% a 30% do total. Emergência pressupõe valores modestos. Assim, determina-se tetos e limites e, conseqüentemente, quem extrapola limites.


FOLHA - O que acha dos gastos sigilosos com cartões do governo?

GONÇALVES - Existem gastos que não podem ser mesmo publicados, como gastos em áreas estratégicas militares, exemplo do submarino nuclear brasileiro. Ou então questões geopolíticas. Mas, em qualquer país razoável, uma comissão bicameral, Câmara e Senado, analisa e acompanha tais gastos. Agora, confidencialidade com gasto em jantar, pagamento de hotel, compra de carne para o presidente não tem o menor cabimento. O problema central não é a carne para o presidente ser risco à segurança, mas gastos sem transparência.


FOLHA - Há diferença entre o cartão de débito usado em São Paulo e o cartão de crédito federal?

GONÇALVES - A diferença prática é financeira, porque no cartão de crédito você paga depois, enquanto o de débito é um cheque eletrônico e o dinheiro sai no ato da conta do governo. No governo de São Paulo há uma conta para esses gastos e há limite para gastos de cada cartão. Mas a rigor não há muita diferença. O mais importante é a transparência, essência do governo eletrônico. A sociedade ficou de olho nos cartões e isso ficará. Cartão de crédito do governo não era muito fiscalizado. E é fácil fiscalizar.


FOLHA - Governo eletrônico é caro?

GONÇALVES - Não! É barato, porque elimina papel, recibos, notas, diminui a oportunidade de corrupção e o custo da transação. Isso traz economia para o Estado. O pior (ou melhor) é que governo eletrônico é uma invenção brasileira, criada com o sistema de licitação eletrônico feito no governo Mario Covas em São Paulo. Isso foi levado depois para outros países.

* foto de uma cena do filme THX 1138

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