Diversidade, Liberdade e Inclusão Social

Foto: Obama, Cameron e Helle Thorning-Schmidt


terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Três Vivas a Kosova


Sobre o Kosovo, muito bom o artigo do israelense Uri Avnery que pesquei do blog do Bourdoukan.


Um sérvio dirige pela estrada, na contra-mão, ouvindo rádio. De repente, o programa é interrompido, para uma notícia urgente: “Atenção! Cuidado! Há um motorista doido na estrada, dirigindo na contramão!”“Só um?!” exclama o sérvio. “Estão todos na contramão!”“Vejam só!” pensei eu, quando meu amigo sérvio contou-me esta piada, “os sérvios são parecidos com os israelenses.”


De fato, por mais diferentes que sejamos os israelenses e os sérvios, temos muito em comum. Israelenses e sérvios acreditam que “o mundo inteiro está contra nós”. E vivem convencidos de que estão completamente certos, mesmo quando o resto do mundo discorda.Como os israelenses, os sérvios vivem também imersos no passado. Para israelenses e sérvios, a história é mais importante que o presente. O futuro é refém do passado.


Há muitos séculos, os sérvios viveram no Kosovo. Para eles, aquela terra é o berço de sua nação. Ali, em junho de 1389, aconteceu o evento que definiu a história sérvia: a grande batalha contra os turcos otomanos. O fato de os sérvios terem sido decisivamente derrotados não muda nada. Tampouco altera alguma coisa que, depois, um povo vindo da Albânia tenha chegado e tenha deitado ali também suas raízes.


Aos olhos dos sérvios, quem não viva no Kosovo há muitos séculos é “estrangeiro”, o país é “patrimônio dos pais fundadores” e “nos pertence, porque nossa religião (Ortodoxa Ocidental) assim o diz”. Tudo isto soa muito familiar a ouvidos israelenses.


Na 2ª Guerra Mundial, cimentou-se o sentimento de solidariedade entre sérvios e judeus. Nosso coração, é claro, estava todo com os valentes partisans. Os judeus que conseguiram chegar as áreas libertadas por Tito foram salvos do Holocausto. Sérvios e judeus foram assassinados lado a lado, nos campos de concentração croatas, tão terríveis que até os oficiais da SS estremeciam ao visitá-los.A morte de Tito e o colapso de seu regime não matou o sentimento de solidariedade. Ao contrário. Os direitistas israelenses apaixonaram-se por Slobodan Milosevic. Ariel Sharon apoiou-o publicamente. Talvez tenha sido seduzido pela mistura de convicta autovitimização e a mais impiedosa brutalidade.Tudo isto explica a confusão de sentimentos que a independência da Kosova provocou nos israelenses.


TEMO QUE, também aqui, minhas idéias divirjam das de muitos israelenses.Meu coração está todo com as massas de albaneses kosovares que festejaram e dançaram, esta semana, nas ruas de Pristina.Lembraram-me as massas que celebraram nas ruas de Telavive há cerca de 60 anos, quando a Assembléia Geral da ONU decidiu criar um Estado israelense (também decidiu criar um Estado árabe-palestino, mas, disto, já ninguém lembra.)


Esta semana, o mundo inteiro discute uma única questão: os kosovares têm direito de ter seu próprio Estado – ou não? Especialistas analisam as leis internacionais, examinam-se possíveis precedentes, lembram-se e repetem-se argumentos a favor e contra.Tudo isto me parece irrelevante. Quando uma população decide ser uma nação, crê na nação e luta como nação – bem, neste caso há uma nação e os cidadãos têm direito ao seu Estado-nação.(Uma vez, eu disse isto a Golda Meir, no Parlamento. Ela negava, como sempre, a existência da nação palestina, repetindo o seu famoso "isto não existe”. “Senhora Primeira Ministra”, respondi eu, “talvez a senhora esteja certa, e os palestinos estejam errados ao acreditar que são uma nação. Mas quando milhões de pessoas crêem, mesmo que creiam errado, que são uma nação, vivam como nação e lutem como nação – então, bem, eles são uma nação.”)


Este é o único teste decisivo. E os kosovares passaram pelo teste. Portanto, há uma nação kosovar, que tem direito de ser Estado kosovar. Vida longa, à República da Kosova!

Milosevic, o genocida, foi parteiro da República da Kosova. Quando decidiu pelo genocídio e expulsou milhões de kosovares da própria terra, ele mesmo assassinou o direito que a Sérvia tivesse sobre a Kosova. Provou o quanto Thomas Jefferson estava certo, quando exigiu, na Declaração de Independência dos EUA”, “respeito decente à opinião da humanidade ".Milosevic e Sharon, seu admirador Sharon, sempre desprezaram a opinião da humanidade. Sempre erraram, os dois, como Stálin também errou ao perguntar, arrogante: “Quantas divisões tem o Papa?" A declaração de independência da República da Kosova é o castigo de Milosevic, tanto quanto a criação de Israel foi uma vingança contra Adolf Hitler (embora tenha cabido aos palestinos pagar por ela).O genocídio monstruoso conduzido por Milosevic ultrajou a consciência da humanidade – e a humanidade, naquele momento tinha divisões ou, pelo menos, tinha esquadrões. A Força Aérea dos EUA bombardeou a Sérvia e obrigou Milosevic a suspender a horrenda expulsão dos kosovares. Os kosovares voltaram às suas casas. A partir de então, a independência foi só questão de tempo.(Muitos dos meus amigos ficaram chocados por eu, naquele momento, ter apoiado o bombardeio contra a Sérvia. Para eles, tudo que a OTAN ou os EUA fizessem era necessariamente errado. Argumentei que tenho alergia a genocídio; sou contra genocídio, mesmo que Deus decrete [o que, segundo a Bíblia, ele fez, contra os amalequitas, os canaaenses e os persas, no tempo de Ester]. Para combater genocidas, alio-me ao demônio.)A lição a aprender no capítulo Kosova é simples: desde a 2ª Guerra Mundial, já ninguém pode cometer genocídio sem levantar contra si a consciência do mundo e disparar a reação para contê-lo. Às vezes acontece tarde, ou chocantemente tarde demais; mas ao final, a vítima sempre se reerguerá sobre seus próprios pés.


ISRAEL DEVE reconhecer a independências dos kosovares?Esta semana, assisti a uma entrevista, pela televisão, com o deputado Arieh Eldad, da ultra-direita. Por um triz, não entrei em pânico: ele parecia defender a independência da Kosova. Mas já na sentença seguinte, relaxei. Não. Arieh Eldad é furiosamente contra que Israel reconheça o novo Estado da Kosova.A que ponto chegaremos?!, perguntava ele. Se a província do Kosovo separa-se do Estado sérvio, o que impedirá que a Galileia proclame-se independente do Estado de Israel? A maioria dos que vivem na Galileia são árabes e, amanhã, quererão um Estado árabe-galileu. Se os kosovares podem, por que não os palestinos?A comparação é, claro, absurda. Primeiro, porque os cidadãos árabes na galileia nem sonham com separatismos. Ao contrário, querem ser integrados a Israel. A prova é que quando outro deputado ultra-direitista, Avigdor Liberman, colega de Eldad, propôs que Israel desistisse das áreas nas quais os árabes são maioria, nenhum cidadão árabe o apoiou. Obviamente, querem continuar a ser cidadãos de Israel; reivindicam, isto sim, direitos iguais.Então, quem se pode comparar aos kosovares – israelenses ou palestinos? Depende do ponto de vista. Para os israelenses, Kosova é semelhante a Israel. Declarou a própria independência, unilateralmente, como fizemos em 1948. Mas os palestinos na Cisjordânia e na Faixa de Ghazaa dirão que eles são como os kosovares e têm direito de ser independentes. De fato, um dos líderes da OLP, Yasser Abed-Rabbo, já disse exatamente isto. As duas comparações são espúrias – nem Israel nem Palestina são Kosova.E surge outra questão genérica: por que uma minoria nacional tem o direito de declarar-se independente e de estabelecer seu próprio Estado-nação? Se os kosovares podem, por que não os bascos na Espanha? Os corsos na França? Os tibetanos na China? Os tamils no Sri Lanka? Os curdos na Turquia, no Iraque, no Irã e na Síria? Os luos no Quênia? Os darfurianos no Sudão?Este é tema a ser deixado aos especialistas em ciências políticas. A realidade tem sua própria linguagem. Cada caso é um caso. Não há tribunal internacional que decida, por padrões estabelecidos, quem tem direito a ser Estado-nação e quem não tem. A coisa decide-se na prática: quando uma população decide alcançar a independência a qualquer custo, e se está disposta a lutar e a sacrificar-se para ser independente – então aqueles homens e mulheres têm direito de ser independentes.As aspirações das minorias dependem também da atitude das maiorias. Uma nação sábia o bastante para tratar com decência as minorias subnacionais, em condições de verdadeira igualdade, conseguirá manter intacto e integrado o Estado. Canadá e Bélgica, por exemplo, entenderam isto e dedicaram-se a impedir o fracionamento do Estado. Mas se o grupo dominante humilha e agride a minoria – como os sérvios fizeram no Kosovo e os russos estão fazendo na Chechênia – ele reforça a motivação, na minoria, para lutar pela independência.LEMBRO uma conversa que tive com Helmut Kohl, então Chanceler alemão, quando visitou Israel e convidou quatro israelenses que falavam alemão, para um jantar privado.Enquanto o corpulento Chanceler jantava (e reclamava, sem razão, por lhe terem servido pouca comida) tivemos discussão animada sobre a Bosnia-Herzegovina que, então, era o foco da atenção internacional. Disse-lhe que, na minha opinião, não havia alternativa além de dividir o país entres os sérvios da Bosnia e os Bosniaks (muçulmanos). Não se pode obrigar dois povos a viver juntos contra a vontade deles.“Não podemos ter dois Estados!”, Kohl respondeu com vigor. “As fronteiras da Europa são imutáveis! Se começar, não acabará nunca. E a fronteira Alemanha-Polônia? Ou Alemanha-Tchecoslováquia?”Pensei em responder que, com todo o respeito, aquela atitude não estava certa. Mas me contive. Afinal, ali estavam um chefe de governo e um simples ativista pela paz. Mas adiante, quando visitei a Bosnia, minha convicção fortaleceu-se. Em teoria, a Bosnia permaneceu, sim, “unida”; na prática, são dois Estados que se odeiam furiosamente. Vivem separados, sem qualquer contato real. Na prática, são dois Estados. A “unidade” é só formal.Agora, a própria Alemanha lidera o processo de mudar uma fronteira na Europa. A Alemanha está reconhecendo a nova Kosova.A IOGUSLÁVIA rachou, e agora também a Sérvia. A unidade do Canadá e da Bélgica é frágil. O Quênia explode em várias unidades étnicas, tribais. Em muitos pontos do mundo, povos minoritários sonham com seus novos Estados-nação.Aparentemente, é um paradoxo. Um Estado pequeno, mesmo um Estado de tamanho médio, não pode defender qualquer independência real num mundo que caminha inevitavelmente para a globalização. Estados como a Alemanha e a França são compelidos a ceder grandes parcelas de seus poderes soberanos para super-Estados supra-nacionais, como a União Européia. A economia francesa e o exército alemão são mais fortemente comandados por Bruxelas do que por Paris ou Berlim. Então, que sentido há em se criarem Estados ainda menores?A resposta está no poder do nacionalismo, que não está diminuindo, antes o contrário. Há cem ou 200 anos, a Córsega não podia defender-se. Para sua própria segurança, tinha de ser parte do reino francês. A terra natal dos bascos não podia manter economia independente e tinha de estar integrada a uma entidade econômica maior, como a Espanha. Hoje, quando Bruxelas decide, por que os corsos e os bascos não podem ter Estados autônomos, membros também da União Européia?Esta é a tendência, em todo o mundo. Não há união de nações, mas, ao contrário, Estados antes “unidos” e que agora se dividem em unidades nacionais. Quem creia que Israel e Palestina algum dia será um único Estado não vive no mundo real. Mais do que nunca, cresce hoje o significado do slogan "dois Estados para dois povos”.Portanto, Israel, hoje, ao se aproximar dos 60 anos de vida como Estado independente, deve reconhecer a República da Kosova e desejar-lhe sucesso e vida longa.


* URI AVNERY,Three Cheers for Kosova. Em Gush Shalom [“Grupo da Paz”], em http://zope.gush-shalom.org/home/en/channels/avnery/1203196052/. Copyleft. Reprodução autorizada pelo autor e pela tradutora.[1][1] “Kosova” é a forma usada pela maioria albanesa, para designar o país. “Kosovo” é a forma usada pela minoria sérvia (Carta Capital n. 484, 27/2/2008, p. 40, “Para entender o Kosovo”.

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