Diversidade, Liberdade e Inclusão Social

Foto: Obama, Cameron e Helle Thorning-Schmidt


sexta-feira, 24 de abril de 2009

Com Celular Na Mão uma Faxineira É Uma Empresa


Onde está o Adair?
Crônica de David Coimbra hoje na Zero Hora

De ônibus vou meio cochilando, meio lendo, meio bebendo a paisagem que passa atrás do vidro, se é que é possível haver três meios numa única viagem. Pois viajava num interestadual, dias atrás, e lia um pequeno livro que madame Adèle Toussaint-Samson escreveu com muita graça em meados do século 19. Essa francesa viveu na corte do imperador Dom Pedro II e fez um delicioso relato sobre o Brasil de então. Lia-o, portanto, quando um grito me sobressaltou:

– Onde é que tu tá, Adair???
Era o passageiro do banco da frente falando ao celular. Pronunciava Adair com sotaque do interior paulista. Adaiur. As pessoas falam alto ao celular, realmente. Não tenho certeza de que seja necessário – a tecnologia das telecomunicações está tão desenvolvida... Mas talvez o Adair sofresse de problemas auditivos, porque nem bem voltei a me concentrar na leitura e o amigo dele repetiu:

– Certo! Mas me diz onde tu tá, Adair!
A nova interrupção me fez refletir sobre a revolução da telefonia móvel. Porque não é a internet a grande mudança do novo mundo. A internet ainda se restringe à elite. A mudança de comportamento, de hábitos e de possibilidades foi causada pelo celular. Com um celular na mão, um filho está sempre em lugar sabido, o socorro é imediato e, o principal, uma faxineira é uma empresa. Seguiria em frente com as considerações filosóficas sobre a importância do celular para a democracia, só que o passageiro da frente berrou outra vez:–


Ô, Adair! Onde é que tu tá, Adair???
Continuava dizendo Adaiur.Aquilo me causou certa aflição. Por que, afinal, o Adair não revelava ao seu amigo onde ele, Adair, se encontrava? Seria um local proibido? Um local de pecado? Provavelmente não. Estávamos no meio da manhã, horário impróprio para a lascívia.– Ei, Adair! – agora o amigo do Adair falava ainda mais alto.

– Onde é que tu tá, Adair???
Talvez o Adair seja daquelas pessoas que não ouvem as outras. Muito comum isso. Você chega para o seu amigo e tenta desabafar:– Puxa, cara, estou com um problema aí que...Ele interrompe:– É mesmo?!? Que coincidência! Eu também estou com um problema! Olha só:...E desanda a falar do problema dele. Esse certamente é o Adair. Há gente demais assim, no mundo de hoje. Autocentrados, para não dizer egoístas.
– MÁ ONDE TU TÁ, ADAIURRR???Ele berrava, mas não parecia irritado. Devia estar acostumado com a falta de atenção do Adair. Depois dessa última interrogação, a conversa deles teve breve prosseguimento. Trocaram mais duas ou três frases. Não prestei atenção nelas, pensava onde o Adair poderia estar. Até que o amigo do Adair desligou. Suspirei. Voltei à leitura. Evoluí um capítulo. E o celular do passageiro da frente tocou de novo, e de novo ele atendeu aos gritos:
– ALÔ???
Estaquei no meio de um parágrafo. Prestei atenção. Quem seria agora? O que ouvi a seguir me deixou perplexo:
– Adair?
O assunto entre os amigos ainda não se esgotara, para minha angústia. Mas o que se seguiu é que me deixou em pânico. O amigo do Adair perguntou com aquele seu sotaque de Piracicaba:
– Me diz: onde é que tu tá, Adair?

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