O Brasil está assistindo a uma onda de invasões dos movimentos ditos sociais, que já não se sentem amarrados pela velha bandeira do latifúndio improdutivo. Devemos atentar para um ponto central da estratégia do MST, consistente em sua preocupação de ocupar os meios de comunicação em geral. As invasões só são eficazes se contam com o apoio da opinião pública, em que repercutam e que termine por incentivá-las. Sem esse apoio, elas apareceriam como meros atos criminosos, de ruptura com o Estado de Direito e de violação arbitrária do direito de propriedade. Assim, reveste-se de particular importância artigo de Plinio de Arruda Sampaio publicado nesta Folha ("A luta pelo direito", "Tendências/Debates", 28/3), defendendo uma ampliação dos movimentos sociais para as cidades. Terra converte-se em imóvel, como se fosse um direito que prescindisse do trabalho e do esforço. Um artigo desse tipo não é um ato isolado. Ele responde a uma estratégia que funcionaria por etapas: a formação preliminar da opinião pública e a ação de organizações, como o MST, que se preparam para invasões. Sob essa ótica, ganha particular relevância a entrevista de Gilmar Mauro, da Coordenação Nacional do MST, ao próprio movimento. Lá é dito que um dos objetivos dessa organização política reside na aliança entre os ditos movimentos do campo e os da cidade, prenúncio, na verdade, de uma crise da democracia brasileira. Mudança do país, para o MST, significa instaurar uma sociedade socialista autoritária, relativizando, senão banindo, o direito de propriedade, a economia de mercado e o Estado de Direito. Trata-se de aliança com os desempregados urbanos, que seriam usados como massa de manobra para a invasão de prédios urbanos desocupados, repetindo na cidade o esquema já utilizado no campo brasileiro. Plinio de Arruda Sampaio tem se destacado por defender a "causa" do MST. Pode-se dizer que é um teórico do movimento emessetista, que apregoa uma utilização dos mecanismos da democracia representativa para subverter essa mesma democracia. Trata-se da supressão da democracia por meios democráticos, tanto mais indolor que menos sentida. O seu artigo, nesse sentido, se caracteriza por uma relativização do direito de propriedade urbano, que, no seu entender, deveria ser totalmente banalizado em proveito dos "sem-teto", dos "desempregados". Ele procura oferecer subsídios jurídicos para esses atos ditos de "ocupação", que se tornariam, assim, legais. Seguindo uma ótica marxista, o autor responsabiliza o setor imobiliário por todos os problemas de moradia no país e, em particular, em São Paulo. A causa principal de ausência de moradias seria a "especulação imobiliária", e não, por exemplo, os altos juros até recentemente pagos pelas construtoras, a falta de uma política de regularização fundiária nas favelas, a burocracia e a insegurança jurídica de quem investe. Ou seja, não seria o Estado que teria essa responsabilidade, como se os altos impostos pagos não tivessem nenhuma serventia social. Não, os responsáveis seriam os proprietários de imóveis e o "capital imobiliário". A cena está armada. O Estado é desresponsabilizado, os proprietários e empresas, responsabilizados, e está preparado o caminho para o MST (no caso, MUST) iniciar o que passa a ser chamado de "ocupação de terrenos públicos e privados", e não "invasão". O vocabulário é aqui importante, pois o autor visa a tornar essa violação da propriedade privada em algo legal, como se esta fosse um bem sem dono, que deveria apenas ser "ocupado". Por sua vez, o termo "invasão" sinalizaria que se trata de um crime, de uma ação ilegal, que deveria ser contida e inviabilizada. Seu objetivo consiste em criar uma "opinião pública" que "iniba a repressão". A pedagogia revolucionária orienta tal tipo de atitude. É dito que a massa organizada por "grupos políticos sérios" -leia-se MST e organizações afins- passe a agir graças à conscientização da qual ela é objeto. Logo, as ações são anunciadas como de "ocupação de terrenos vazios", de modo que ocorreria um movimento de instabilização urbana similar ao que já ocorre no campo, com o fortalecimento de organizações de caráter revolucionário, que se aproveitam dos sentimentos morais da população brasileira para legalizar a sua atuação baseada na violência. Só ingênuos ou pessoas de má-fé acreditam que as "invasões" (ditas "ocupações") são pacíficas. O que está se preparando é um tipo de ação urbana do MST que precisa, no entanto, legitimar-se primeiro com a opinião pública. É a função mesma do artigo.
DENIS LERRER ROSENFIELD, 57, doutor pela Universidade de Paris 1, é professor titular de filosofia da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e editor da revista "Filosofia Política". É autor de "Reflexões sobre o Direito à Propriedade", entre outros livros.
DENIS LERRER ROSENFIELD, 57, doutor pela Universidade de Paris 1, é professor titular de filosofia da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e editor da revista "Filosofia Política". É autor de "Reflexões sobre o Direito à Propriedade", entre outros livros.
Publicado na Folha de hoje.
2 comentários:
Me parece que o tempo acerta de uma maneira ou de outra todos os erros cometidos pelo homem, e muitas vezes o acerto envolve outros erros!?
Não só no Brasil, mas é o que nos interessa,a "distribuição" de terras sempre foi injusta, mas a melhor palavra seria desonesta.
No passado, vários "coroné" e latifundiários, fizeram misérias para ter a posse de terras, assasinatos,intimidação,roubo,estelionatos e subornos. Muito ruralista de hoje, empressário do agro-business é neto de grileiro, gente que tomou a terra na marra e mandou matar muita gente, os que eram legítimos donos da terra, mas ignorantes sobre seus direitos e sem amigos no poder para lhes ajudar.
Muitos erros depois, uma massa "dos sem terra" explorada por espertalhões - o mundo está cheio deles - faz o acerto enviesado dos erros passados, da maneira errada e mais sofrida possível, como a humanidade gosta, quando o assunto é a terra!
Agora, falam da ocupação de terrenos e prédios abandonados, públicos ou privados. No momento seguinte, vão começar a invadir casas de praia ou de campo, que não estão cumprindo sua função social. Daí para invadir apartamentos ou casas um pouco maiores, porque podem dar guarita a mais uma ou dez famílias, é um pulinho... Alguém assistiu "Dr. Jivago"?
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