Diversidade, Liberdade e Inclusão Social

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domingo, 26 de agosto de 2007

A Esquerda Difícil de Ruy Fausto


Muito boa a entrevista do filósofo Ruy Fausto, na Folha de hoje, sobre a intelectualidade brasileira dos nossos tempos e sobre os rumos da nossa complicada gauche.




Ruy Fausto lançou recentemente o livro "A esquerda difícil" (um belo título para um livro), editado pela Perspectiva.


Fausto cai em cima da professora Marilena Chaui que jura de pés juntos que o mensalão não existiu.

Diz ele:

"Lamentavelmente, parte da intelectualidade do PT tomou a defesa do partido, e portanto dos corruptos, e pôs a culpa na imprensa pelo escândalo, como se ela tivesse montado o essencial", afirma. "A tendência a transformar tudo em complô da mídia é propriamente lamentável, e mostra a total desorientação de parte da intelectualidade petista."

A seguir, trechos da entrevista.


FOLHA - Em seu livro, o sr. condena certa crítica ao governo Lula que identifica com uma "extrema esquerda intelectual niilista". Ataca também a "crítica política compacta de um mundo globalizado, em que não se vê nenhuma possibilidade de saída". O que marca essa crítica?

RUY FAUSTO - As posições políticas dos intelectuais brasileiros em geral me assustam. Isso parece muito pretensioso, mas o conjunto me parece um sistema de erros. Esquematicamente, os intelectuais tendem a assumir três posições diferentes, e a meu ver, as três equivocadas. Há por um lado os radicais, por outro os petistas, em terceiro lugar os que abandonaram a perspectiva de esquerda, e aderem a partidos como o PSDB. O que chamei de niilismo é uma das duas variantes do primeiro grupo, que inclui igualmente uma variante revolucionária tradicional. O que visei falando em niilismo? A tendência a falar num fechamento global da situação, e numa suposta impossibilidade em tomar qualquer atitude politicamente acertada e produtiva.
FOLHA - Há riscos nesse tipo de crítica? O que se perde aí?

FAUSTO - Claro que a situação é difícil, e é preciso esforço para definir que iniciativas poderiam representar um bom programa à esquerda no Brasil. Ela só é problemática no sentido de que, para se reorientar, é preciso se desvencilhar de um certo número de preconceitos. Quanto à posição de Paulo Arantes, é muito marcada pelo marxismo, com a novidade, muito relativa, de que há um pessimismo em relação às possibilidades da revolução. Isso é muito pouca coisa como "aggiornamento" teórico. O autor continua pensando no interior de um esquema maniqueísta, em que há o capitalismo onipotente, e as forças que tentam se opor a ele, sem sucesso. Esse tipo de esquema, na realidade hiperclássico, o leva a erros enormes, como um que assinalo em um dos meus textos: o Gulag (como também Auschwitz) é considerado como fenômeno capitalista! Como digo no meu livro, no esquema dualista (em certo sentido, mesmo, monista) do autor, tudo aquilo que cai na rede da contemporaneidade (se não for socialista, e o autor não é tão ingênuo a ponto de pensar que o Gulag tem algo a ver com socialismo) há de ser peixe capitalista. Que se trate de um "tertius", nem capitalismo nem socialismo (o que é evidente para 90% da esquerda européia, já há bastante tempo), isso não lhe passa pela cabeça.


FOLHA - No livro, o sr. indica ter ainda confiança na capacidade de o PT representar um projeto de esquerda democrática no país. Num comentário, entre colchetes, afirma em seguida que essa crença se perdeu. Como foi?
FAUSTO - É. Quando escrevi o artigo, creio que foi em 2004, ainda tinha esperança no PT, depois perdi. Diria que foi impossível continuar a acreditar no PT, desde que se revelaram os primeiros escândalos ligados ao chamado mensalão. O assunto corrupção é sério demais para ser considerado de um modo ligeiro, para quem acredita em democracia. Lamentavelmente, parte da intelectualidade do PT tomou a defesa do partido, e portanto dos corruptos, e pôs a culpa na imprensa pelo escândalo, como se ela tivesse montado o essencial. A tendência a transformar tudo em complô da mídia -que está longe de ser inocente, principalmente na sua atitude para com o governo Lula, mas, no caso do mensalão, fora as diatribes sinistras contra intelectuais do PT proferidas por certa revista, ela acertou muito mais do que errou- é propriamente lamentável, e mostra a total desorientação de parte da intelectualidade petista. Não se defendem princípios, defende-se um partido. Como se os partidos não apodrecessem, e como se eles fossem mais importantes do que um projeto socialista democrático sério. Essa atitude mistificou parte da opinião universitária, que "não acredita" no mensalão, como se se tratasse de um problema de crença ou de fé (se o mensalão era quinzenal, ou semestral, isso interessa pouco, o essencial é que houve corrupção, e grande). Com isso não quero dizer que nada preste no PT, nem que ele não tenha mais interesse. Há certo número de pessoas honestas e com convicções ali. Só que são minoritárias. Veremos se ainda podem desempenhar algum papel.
FOLHA - O sr. também cita as críticas da imprensa e de "partidários do governo antigo", e afirma que a situação do país, e do governo Lula, exigiria uma "finura crítica" maior.

FAUSTO - O terceiro engano (o primeiro é o radicalismo, o segundo o petismo acrítico) é a adesão aos partidos de centro e de centro-direita. Não estou dizendo que FHC e cia. sejam monstros, com os quais todo diálogo seja impossível. O diálogo é sempre possível, e dentro do PSDB há tendências desenvolvimentistas, como há gente pessoalmente honesta etc. Mas isso não é suficiente, longe daí, para justificar um deslizamento de pessoas que foram de esquerda (ver o PPS, e alguns intelectuais) em direção ao PSDB. Aderir ao PSDB, ou "adotar" a política dos tucanos é renunciar a uma posição de esquerda. O que significa: é abandonar a idéia de que é preciso antes de tudo combater a desigualdade monstruosa que existe no país, e a de que toda política deve visar em primeiro lugar a luta contra essa desigualdade, e o estabelecimento de uma situação em que os pobres não sejam mais hiperexplorados ou marginalizados.
FOLHA - Ao recusar a "extrema-esquerda niilista", petistas e tucanos, o sr. se situa onde? FAUSTO - A reorientação política em si mesma não é difícil, senão no sentido de que é preciso vencer preconceitos arraigados. No plano prático, claro, tudo é muito difícil. O mais importante por ora é travar uma luta pela hegemonia das idéias de um socialismo crítico e democrático. Isso é o que dá para fazer por enquanto. É limitado, mas é muito importante. Creio que precisaríamos de uma revista, mas uma revista com gente que tenha posições bastante convergentes, e que se disponha a trabalhar no sentido de uma crítica intransigente ao petismo acrítico, ao revolucionarismo -inclusive o niilista- e às pseudo-sociais-democracias nacionais, que na realidade não têm nada de social-democratas. Uma revista política e teórica que fosse nessa direção representaria um passo importante, no sentido da preparação de uma reorganização política. Pelo menos denunciaríamos os sofismas e as jogadas de uns e outros. A partir daí, e entrando em contato com o que existe de melhor em vários grupos ou partidos (há gente politicamente sã, mesmo se minoritária, um pouco por todo lado, inclusive fora de grupos ou partidos) veríamos o que seria possível fazer a médio prazo.
FOLHA - O sr. fala em desafios para a esquerda, que seja capaz de repor projetos de futuro e de pensar criticamente a herança marxista. O que no marxismo ainda pode ser usado?

FAUSTO - Defendo que é preciso "atravessar" Marx e o marxismo. Há neles um lado que é suficientemente vivo, e há um lado definitivamente morto. Esquematicamente, acho que o corpus marxiano funciona bastante bem, ainda, como crítica (digo, em termos gerais, mas essenciais) do capitalismo. Mas funciona muito mal como política, e em grande parte, como filosofia da história. Principalmente, ele não serve para decifrar e criticar os totalitarismos. Por isso mesmo, ele serviu e serve como ideologia para estes últimos, mesmo se sob formas modificadas. A tragédia da esquerda atual é que pouca gente pensa assim. Grosso modo, na Europa domina a idéia de um Marx inteiramente morto, no terceiro mundo o de um Marx senão inteiramente pelo menos essencialmente vivo. As duas teses são erradas, e suas conseqüências são simetricamente catastróficas. Acho lamentável que intelectuais de bom nível continuem enchendo a cabeça da juventude com contos da carochinha sangrentos como o da "ditadura do proletariado", fazendo abstração de tudo o que aconteceu no século 20. No outro extremo, há, na Europa sobretudo, uma tendência de recusar Marx de forma absoluta, em todos os seus aspectos. Uma espécie de alergia a Marx. O resultado não é menos desastroso. A esquerda se perde no terceiro e no primeiro mundo, mas por razões opostas.
FOLHA - Como seria esse projeto futuro de socialismo que respeita a democracia e abre mão, em grande medida, da violência?

FAUSTO - Não é fácil propor programas. Mas é possível pensar em algumas idéias. Além da preservação e ampliação dos direitos democráticos no plano civil e político, e de uma atitude absolutamente intransigente em relação à corrupção, caberia tomar medidas de redistribuição de renda. Nesse plano, uma modificação das regras de cobrança do imposto de renda se impõe. Associada a medidas econômicas que facilitem o desenvolvimento, ela poderia liberar fundos que permitissem verdadeiras reformas no plano da educação e da saúde. Sem uma política radical de redistribuição de renda, as necessárias reformas da previdência e da educação se transformam em mini-reformas de eficácia muito limitada. Há por outro lado, os projetos de economia solidária, as cooperativas essencialmente, que têm dado resultados positivos em outros países. A longo prazo, o objetivo seria uma sociedade em que há mercadoria e mercado, mas em que o capital é de uma forma ou de outra controlado, e neutralizado nos seus efeitos.
FOLHA - É realista falar ainda em projeto socialista?

FAUSTO - A situação é difícil. Mas em primeiro lugar é preciso pensar com lucidez e clareza, o que significa, se dispor a repensar a tradição socialista sem preconceitos. Claro que isso não nos tira da situação atual. Mas é condição necessária. A idéia de que não há mais classe que suporte projetos de mudança é tradicional demais.Também a idéia de que há integração de todos ao sistema teria que ser posta à prova. Enquanto se falar da derrota do socialismo a propósito da derrocada do socialismo de caserna, enquanto se continuar a ter ilusões com o castrismo, o chavismo etc etc, é inútil se queixar de que não se vêem saídas. Resolvam primeiro essas confusões, abram-se para um discurso lúcido radical-democrático, e depois veremos o que fazer.

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