O caderno Mais da Folha de S. Paulo de ontem fez uma homenagem aos cem anos do arquiteto Oscar Niemeyer. Foram divulgadas entrevistas com o próprio Niemeyer e outros arquitetos, depoimentos, cronologias e textos. Mas o melhor deles, segundo este blogueiro foi o artigo escrito por Teixeira Coelho, curador do MASP: as Fomas de um País.
Não sou muito fã de Niemeyer, acho que sua obra tem aspectos fascinantes, mas têm dificuldade de interação. Foi exatamente isso o que disse Teixeira Coelho
As formas de um País - Teixeira Coelho
Viver tanto tempo, durante tanto tempo gerar e implantar a forma. Produzir durante tanto tempo, quer dizer. É a condição para deixar marca. Não condição suficiente, nem necessária. Apenas, não raro, decisiva. Nenhuma outra idéia cultural no Brasil moderno e contemporâneo teve tanta presença imaginária e real como Niemeyer. E isso criou a circunstância em que pôde se tornar uma figura mitopoética.De fato e de direito -ainda que seu meio tenha sido freqüentemente a força. A força do Estado por trás dele. A vida de duas gerações confortavelmente instaladas no tempo -e de três gerações nele apertadas- se passou sob o império da forma de Niemeyer. Conteúdos precisam de formas para existir. Niemeyer proveu essa forma. Sozinho, transformou-se em alegoria de uma cultura. Apegadamente ligado a uma idéia do século 19, o comunismo, produziu para o liberalismo (supondo que JK tenha sido um liberal) e o fascismo do século 20 e continua servindo de continente para a geléia ideológica que se esparrama pelo 21. Moldou Pampulha e Brasília na pele de um arquiteto de esquerda -da esquerda clássica, de manifestos- e continuou produzindo para a ditadura de direita instalada no país e em sua cidade em 1964. Conteúdos análogos aceitam ou requerem uma mesma forma. Uma mesma forma canaliza conteúdos supostamente opostos e revela a igualdade real entre eles. A forma de Niemeyer não fez a dialética entre conteúdos opostos, esse conflito do qual um terceiro emerge: apenas revelou a proximidade entre simétricos de sinais opostos, porém de leito comum. Não é irrelevante que seu cliente usual tenha sido o Estado. Um Estado cuja carreira é aqui ininterruptamente autoritária e que só de vez em quando se entregou a soluços liberais, libertários ou, simplesmente, indicativos de liberdade. Um Estado fraco e, no entanto, terrivelmente forte. Labirinto O mitopoema Niemeyer não teria existido sem o Estado. Sua arquitetura foi largamente de Estado assim como Brasília é uma cidade do Estado, uma cidade-Estado. Brasília, em seus traços centrais, fracassou: os semáforos que não deveriam existir agora estão lá, aquilo que deveria fluir se vê represado nos bolsões de estacionamento, a cidade que deveria ser planejada escapa sem controle por toda parte e tudo vira um armadilha para o indivíduo, o ser humano. Esse labirinto estava embutido no projeto, era sistêmico. Poderia ter sido previsto. A arquitetura de Niemeyer fracassou com isso? Não, ela é, como ele, mitopoética: é um mito que se construiu ("poiesis") e que mantém sua função poética quando se olha para a peça isolada e se esquece o sistema a que pertence. Nisso ela é essencialmente mitopoética, nisso é uma analogia perfeita da cultura do país. O Palácio dos Arcos é um deslumbramento, a catedral de Brasília é um espetáculo, o MAC de Niterói é uma obra de arte, o Teatro do Ibirapuera é um monumento. Se funcionam é outra questão, irrelevante para a função poética. Contradições Numa cerimônia pública em sua homenagem há mais de dez anos, quando se imaginava que estivesse no fim da vida, Niemeyer declarou-se "deprimido frente a esses trabalhos que vocês vão examinar". Reconheceu ter construído para o Estado, trabalhado para os ricos e poderosos e nunca ter feito nada "para este mundo de pobres que constitui a maior parte de meus irmãos". Arquitetura da contradição, portanto. Outra vez. Contradição ideológica, contradição social, contradição pessoal. Outra vez, uma analogia da cultura do país. Contradição estilística, também: se foi banalmente modernista em muitos blocos-padrão, como o edifício da Bienal de SP (pelo menos por fora), foi sensivelmente pós-moderno em tanta outra coisa. Fazendo essa autocrítica, em que se diz frustrado, Niemeyer quase repete Horowitz perguntando a todo mundo, no final da vida, se havia tocado bem. "Toquei bem, toquei bem?", perguntava. Todo mundo dizia que sim. Perguntando a mesma coisa para sua mulher, ela, olhando para o lado, respondeu: "Não faz diferença". Não faz diferença, Niemeyer. Niemeyer fez o que fez, mas fez mais do que fez: fez um romance nacional, fez uma novela nacional. Niemeyer é um borgesiano personagem de Glauber, é a vindicação da estética em transe do cineasta baiano. Isso é mitopoiesis. Há algumas mitopoéticas que se revelam inescapáveis, instituintes. A arquitetura de Niemeyer foi instituinte de todo um vasto imaginário, com tudo que os imaginários têm de obsessão, perdição e salvação. Mesmo quando se tornam inconscientes e adormecem no sono das gerações mais jovens.
TEIXEIRA COELHO é curador-chefe do Museu de Arte de São Paulo (Masp) e autor de "Niemeyer - Um Romance" (Iluminuras).
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