A constatação não se restringe à sociedade brasileira: o consumo excessivo de álcool cada vez mais cedo é de âmbito global.
Em São Paulo, as noites de sexta a domingo testemunham multidões de jovens consumidores em suas baladas à alegria. Abastecem-se e aquecem-se nos postos de gasolina e supermercados, espalham-se brindando pelas ruas e calçadas vizinhas a casas noturnas e lotam os bares. Há as festas e raves, que só freqüentamos perplexos por meio de relatos dos filhos. Mesmo a planilha de inocentes churrascos calcula a quantidade de cerveja multiplicando-se o número de pessoas por dúzias, em vez de unidades.
Não fora a associação com o carro, que agride o direito à vida e pode tornar motoristas em homicidas, talvez tivéssemos tolerado a embriaguez precoce como o mal do novo século. O debate está instaurado, é legítimo e importa que não se arrefeça assim que se perder o impacto da novidade.
Porém, esse movimento, tal como é exposto pela mídia, pode permanecer no rodapé do problema. A análise tende ao tipo digital (sim/não) e opinativo (concordo/não concordo). É imprescindível introduzir consistência e argumentos mais complexos, na tentativa de desenhar um projeto não exclusivo da lei e da pena, mas que interaja com princípios de outra ordem. A vida de cada um e a de todos se nutre de planos direcionados ao futuro, mas o que nos permite compreender a realidade e sustentar tais projetos é o apoio no passado, na história humana que nos gerou e na cultura que nos constitui. A tradição hebraico-cristã, por exemplo, modelou padrões e valores que os presentes sucessivos se encarregam de rechaçar ou confirmar, reinterpretar e transfigurar em hábito, moral e poesia.
O primeiro milagre de Jesus, de acordo com o Evangelho de João, foi transformar água em vinho, a pedido de Maria, para que as bodas em Caná pudessem cumprir seu ritual de alegria. Deve haver na literatura bíblica críticas à embriaguez; mas em suas páginas também cabe o elogio ao prazer de viver, amar e compartilhar simbolizado pelo vinho do Cântico dos Cânticos e da Santa Ceia.
Do sábio sabor do brinde ao retrato caricato dos excessos, séculos de arte traduzem o melhor e o pior das ações humanas, mais que do álcool. Este contracena com a fragilidade do homem, com sua inquietação e liberdade, sua graça e desespero. Depois da segunda dose -diz a anedota-, qualquer um começa a sentir-se interessante; depois da terceira, crê plenamente em sua capacidade de decidir e continuar dirigindo.
Houve épocas e sociedades em que a tradição esteve apta a oferecer referências, fronteiras e respostas. Esta, em que vivemos, carece de certezas: nem fé, nem razão, nem cidadania estabilizam o desencanto nos valores e o mal-estar coletivo.É uma sociedade logicamente inconsistente, construída sobre contradições sem síntese possível.
É permissiva e superprotetora com crianças e jovens, o que adia a autonomia e a responsabilidade; a moeda corrente é o excesso, enquanto prega a virtude da temperança; cria necessidades e as descarta rapidamente; reitera o bordão do sucesso a qualquer preço e não ensina a frustração; declara a meta da felicidade coletiva e suprime que viver é viver a dificuldade; apela à força das leis e dos deveres como recurso para o caos e as adapta à interpretação individual plena de direitos.
Na confluência contemporânea entre homem e álcool -essa droga lícita e cultural-, o embate talvez só possa ser evitado por meio da educação.Educar é a possibilidade limite da humanização. Ela prevê norma e restrição, mas acredita, sobretudo, na razão e na construção do livre pensar.O homem é feito de interrogações perenes, que buscam sentido e certeza, que por sua vez se afastam ou se refazem em novas perguntas.Essa condição inquieta e livre impõe ao educador procedimentos de formação da consciência, e não apenas da contenção externa. Não há dúvidas de que as regras asseguram as condições para a socialização e o aprendizado; mas deve haver uma construção interna de valores, capaz de criar uma pessoa convicta, cujas ações são uma adesão livre ao convívio e à coletividade. A consciência implica essa adesão de dentro para fora, e tal processo é lento.A força da lei e suas sanções detêm a transgressão, mas, sozinhas, não consolidam uma ética. Não parece eficaz impedir sem motivar, sem orientar e permitir a escolha com base em um ideal de vida e sociedade.Jovens precisam sobrevoar sozinhos o espaço próximo de seus ninhos, discutir sua experiência e questionar a de seus pais e pares, para poder crescer e alçar com menor risco altitudes e longitudes novas.
Artigo de Cristine Conforti, mestre e doutora em educação pela USP, é diretora do colégio Santa Cruz, de São Paulo (educação infantil e ensino fundamental 1).
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