Diversidade, Liberdade e Inclusão Social

Foto: Obama, Cameron e Helle Thorning-Schmidt


segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

O Prazer de Dizer Não - H. M. Enzensberger


No final da guerra, eu tinha 16 anos e idéias políticas bastante confusas. Durante minha adolescência sob o regime nazista, eu tivera de aprender, em especial na escola, os códigos e os jargões hitleristas de rigor. Todo mundo tinha de dizer: "Heil Hitler!", mas cada um com seu jeito -insolente ou regulamentar- de levantar o braço. Entre amigos, nós nos entendíamos por meias-palavras e insinuações. Às vezes era preciso ser muito prudente. Logo se aprende o que se deve e o que não se deve dizer. Eu não era um antifascista maduro, mas descobrira o prazer de dizer não. Repetíamos tudo o que nos ensinavam na Juventude Hitlerista, mas sem acreditar numa palavra daquilo. Não havia nada de heróico nisso -mas aquilo já era uma micro-resistência. Um dia, fui expulso da Juventude Hitlerista. Em 1942, a cerimônia de exclusão era grave e solene. Tive que assumir um ar consternado diante da punição que a eles parecia degradante, mas no fundo estava exultante e tinha que me segurar para não rir. Meu pai desprezava os nazistas, que ele achava uns grosseirões incultos. No fundo, era uma reação de classe. Anarquia O fim da guerra foi um imenso alívio. Como rapaz, eu adorava os aspectos anárquicos da situação. O governo alemão já não existia mais, e a administração das forças aliadas só se preocupava com as cidades grandes. Fui recrutado como intérprete dos britânicos numa cidadezinha provinciana da Francônia. Foi um tempo bom. Como meu pai não estava conosco, era minha a responsabilidade de assegurar a sobrevivência da família. Apesar das dificuldades, sobretudo para conseguir comida, eu gostava do lado tragicômico da situação. De um lado, a vida não era propriamente alegre; de outro, nós, jovens, desenvolvemos uma espécie de humor patibular. Eu era rico, graças ao tráfico de cigarros ingleses, e ainda tive a oportunidade de ver em funcionamento as engrenagens do capitalismo selvagem! O período seguinte foi muito difícil. No começo dos anos 50, havia um clima de negação coletiva do passado e de rejeição de toda memória. Ninguém queria olhar para trás. A juventude optara pelo anticonformismo. O jazz e o existencialismo nos estendiam os braços. Na época em que eu estudava em Freiburg, um professor jesuíta tinha permissão, por ser jesuíta, de dar cursos sobre marxismo. No clima anticomunista da época, que revelação! Em 1951, os escritos do jovem Marx me ofereciam uma chave para compreender a guerra, a destruição, o nazismo e o caos ao redor. Descobri os teóricos da Escola de Frankfurt. Felizmente, eles haviam retornado, pois os grandes intelectuais da esquerda alemã tinham partido e deixado um vácuo profundo. Nesses anos, nós, jovens, vivíamos uma situação rara e extraordinária. A qualquer momento podíamos pedir que nossos pais prestassem contas -fossem eles médicos ou professores, juízes ou policiais. O que você andou fazendo naqueles anos? Era uma pergunta dura. Aprendi a não deixar de fazer perguntas incômodas. O nazismo me legou um ódio visceral às ditaduras. Mais tarde, abominei Franco, os coronéis gregos, Pinochet e Saddam. Em 1955, concluídos os estudos, decidi que ser alemão não era uma profissão. Eu tinha de romper com essa prisão interior. Então viajei, passei oito anos na Noruega, na Itália, na URSS, nos Estados Unidos e na França. Aprendi línguas estrangeiras. Queria escapar, respirar. Atualmente, a Alemanha se tornou tão habitável que é dirigida por uma dona-de-casa. Melhor assim. Tranqüilizador. Sonho com o dia em que a política será um serviço público entre outros, útil como a coleta do lixo, livre das paixões que nos fizeram tanto mal. A política não deve invadir tudo. Foi por isso, por auto-defesa, que escolhi a literatura, a poesia, o amor e as viagens. Não gosto de etiquetas, como não gosto de me repetir. Depois de um volume de poemas, eu me lanço num romance, numa exposição, num libreto de ópera ou na direção de uma revista.
A Alemanha se tornou tão habitável que é dirigida por uma dona-de-casa; melhor assim.
Em termos econômicos, sou um vendedor de palavras. A maioria das pessoas vive de empregos que as entediam. Eu não entendo os escritores que se queixam -que privilégio poder dispor do próprio tempo e exercer um ofício sem chefe! Terroristas Em 1968, consideravam-me o "enfant terrible" da esquerda. O que é estranho, pois na época eu tinha dez anos mais que os militantes esquerdistas de todas as microorganizações. Participei daquele movimento que balançava os costumes e debatia a questão da autoridade, tão onipresente na Alemanha. Os etnólogos falavam de "pesquisa participante". Foi nesse espírito que participei do movimento. Participava e observava. Conheci a maioria dos futuros terroristas alemães. Tentaram me recrutar. Tentei argumentar em termos marxistas: "Essa análise é delirante. Não há nenhuma situação revolucionária. Estudem história". Mas eles se lançaram numa espiral desvairada, certamente involuntária no começo. Pois tudo começou com uma derrapagem. A fim de libertar um jovem condenado a dois anos de prisão que fora autorizado a freqüentar uma biblioteca, três militantes atiraram num velho bibliotecário e saíram em fuga. A partir desse momento, viraram clandestinos, foras-da-lei. Essa é uma lógica da qual não se escapa. É preciso conseguir dinheiro para sobreviver e praticar atos para se autojustificar. Começa-se teorizando a escalada revolucionária, termina-se acreditando nela. Antes mesmo de escrever "O Perdedor Radical", eu estudara o terrorismo russo do século 19 e os anarquistas franceses do começo do século. O terrorismo é uma invenção européia. A seita oriental dos assassinos é uma história completamente diferente. Comparando os atos individuais ou coletivos, encontram-se algumas tendências. Acredito que os "faits divers" relativos ao assassinato e ao suicídio fornecem uma chave, não política, mas psicológica, para esse mecanismo, para essa mistura de destruição e autodestruição. Um terrorista islâmico e um anarquista russo têm, em comum, o ressentimento, a necessidade de revanche, o complexo de inferioridade. Na ciência política, é proibido "psicologizar". Mas excluir a psicologia do terrorista significa que não se faz sequer o esforço de se meter em seu cérebro e ver como ele funciona. Os terroristas islâmicos de hoje são obcecados pelo declínio histórico do mundo árabe e por sua grandeza pregressa. Falam sempre de reconquista. Entre nós, é preciso partir de fatos bem sabidos. O complexo de Versalhes, por exemplo, forneceu aos alemães uma enorme energia destrutiva que chegou às raias do horror. Para Hitler, Versalhes foi um verdadeiro pão bento. Por aí se vê o que 20 anos de humilhação são capazes de produzir -e sem que nenhum aspecto religioso intervenha. E pensar que os terroristas islâmicos pensam numa escala de séculos! É sempre interessante traçar analogias, antes de desconstruí-las. Ser de esquerda em 2007 Ninguém sabe muito bem o que significa ser de esquerda hoje em dia. Isso porque as alternativas ao capitalismo fracassaram. Estamos reduzidos a um mundo de capitalismos no plural, pois o capitalismo sueco não é o da Índia, o do Paraguai ou o da China. É bem verdade que a esquerda e a direita têm tradições diferentes -e, infelizmente, confluências também. Durante a República de Weimar, as flutuações entre extrema esquerda e extrema direita foram maciças. Na antiga Alemanha Oriental, 40 anos de ditadura desnortearam muita gente, por muito tempo, e hoje o voto comunista pode ser tanto de reação quanto de contestação. Entre nós, muito burguês bem-de-vida se diz de esquerda, mas não se compromete com nada. As etiquetas são mais obsoletas que nunca. Livros para ilha deserta Um livro em branco, para escrever. Um dicionário. E "Jacques, o Fatalista". Sou apaixonado por Diderot. Se pudesse conversar com um personagem histórico, seria com ele, sem a menor dúvida. Um homem admirável, de uma inteligência extrema. Uma mobilidade de espírito, uma alegria e um humor admiráveis. E a capacidade de combinar as forças intelectuais na "Enciclopédia".

Este texto saiu na "Nouvel Observateur". Tradução de Samuel Titan Jr e foi publicado no Caderno Mais da Folha de ontem.


Hans Magnus Enzensberger é poeta e ensaista alemão.

2 comentários:

PoPa disse...

Interessantíssimo o texto!

Carlos Eduardo da Maia disse...

Pampa, se tem um cara que respeito é esse tal de Enzensberger.