Recomendo o artigo de Aldo Pereira, na Folha de hoje, sobre a ajuda financeira do governo americano às corporações Fannie Mae e Freddie Mac.
O socorro financeiro do governo americano às corporações hipotecárias Fannie Mae e Freddie Mac expôs nova fratura num dos pilares da democracia liberal (economia de mercado, direito de propriedade, liberdade de expressão etc.).
O siglônimo Fannie Mae refere-se a Federal National Mortgage Association, "associação hipotecária nacional federal"; e Freddie Mac corresponde a Federal Home Mortgage Corporation, "corporação federal de hipotecas domiciliares".
Os nomes sugerem tratar-se de instituições oficiais, mas ambas são sociedades anônimas esdruxulamente respaldadas por fiança estatal. Daí a contingente transfusão de dinheiro público para lhes aliviar a aguda anemia financeira. Inferência: às vezes, nem o mais capitalista dos mercados sara por si.
Não que haja novidade aí. O presidente Roosevelt criou Fannie Mae como estatal, em 1938, para acudir ao tsunami de penúria que engolfara o país quando o dique da Bolsa desmoronou em 1929. Fannie Mae reanimou o setor de construção, do qual escaldados investidores tinham debandado em pânico. Lyndon Johnson "privatizou" Fannie em 1978. E criou Freddie, dois anos depois, para atenuar críticas ao monopólio tutelado.
Juntas, as duas corporações detêm cerca de metade das hipotecas do país, mais de US$ 5 trilhões.Tem havido outras cerziduras estatais no puído pano de fundo do teatro capitalista dos EUA. Em 1979, aval autorizado por Jimmy Carter salvou a Chrysler da falência. E quando motos japonesas ultrapassaram a Harley-Davidson, em 1983, Ronald Reagan, pretenso campeão do livre comércio, impôs às concorrentes quotas de importação e oneroso aumento de tarifa alfandegária, de 4,4% para 49%.Quem diria. Quando a Segunda Guerra Mundial acabou, nenhum dos credores que hoje aperreiam Tio Sam tinha como concorrer com a intacta indústria americana, nem com sua cornucópia agrícola. Na conferência de Bretton Woods, 1944, americanos inebriados pelo "hubris" da vitória e da opulência rejeitaram a proposta de criação de um banco central do mundo, idéia do inglês John Maynard Keynes (1883-1946). Em vez do bancor, moeda mundial sugerida por Keynes, impuseram o dólar. Isto é, o poder de exportar inflação, imprimindo moeda mundial na forma de letras do Tesouro denominadas em dólar. Têm coberto assim a despesa fenomenal acumulada em décadas de guerras frias e quentes.Em dólares de hoje, o Plano Marshall de ajuda à reconstrução da Europa no após-guerra custou uns 120 bilhões. Criação, desenvolvimento e defesa de Israel, desde 1948, meio trilhão (sem contar o que tem custado, e ainda poderá custar, o vingativo terrorismo muçulmano).Pior. O imperativo de "canhões ou manteiga" nunca deixou de ser "canhões com manteiga", alegoricamente representado por carrões hipertrofiados e luminosos de néon.Nenhum governante afrontou o risco eleitoral de conter tal consumo perdulário de energia e recursos naturais.Empanturrados das tais letras do Tesouro, países credores acharam meio um tanto furtivo de trocar esses papéis por ações de empresas e bens tangíveis, inclusive imóveis dentro dos EUA. Embora não litigioso (até agora), o processo corresponde a implacável execução de penhora.Para operacionalizar a cobrança, detentores das letras vêm convertendo reservas em fundos soberanos. Isto é, de propriedade e controle estatal.Até o Brasil projeta o seu, no valor de US$ 50 bilhões. O da China vale hoje uns US$ 200 bilhões (mais que os valores de mercado, somados, de Bradesco, Itaú, Banco do Brasil e Unibanco). Nos próximos cinco anos, o valor total dos fundos soberanos talvez passe dos US$ 10 trilhões. Com esse dinheiro, igual ao que Tio Sam deve ao mundo, você poderia assumir controle acionário de todo o sistema bancário dos Estados Unidos.Para não alarmar dirigentes americanos com tão fantasiosas hipóteses, os fundos soberanos vêm operando com moderação. Assumem participação minoritária no capital de empresas promissoras, sem pretensão explícita ao controle delas. Mesmo assim, acrescem nervosismo à atmosfera já tensa da economia americana.Afinal, são concorrentes estatais estrangeiros de empresas privadas nacionais.Mesmo descontando explorações oportunistas (como a que neocomunistas do governo brasileiro já se movimentam para fazer), a democracia liberal terá de reconhecer que, no sentido original da expressão, "economia de mercado" é idéia morta.
ALDO PEREIRA, 75, é ex-editorialista e colaborador especial da Folha
ALDO PEREIRA, 75, é ex-editorialista e colaborador especial da Folha
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