Diversidade, Liberdade e Inclusão Social

Foto: Obama, Cameron e Helle Thorning-Schmidt


quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Mercado não é deus, mas ele existe, está ai.


Leio no diario gauche uma pérola fenomenal:



E tem, também, um ótimo artigo de um economista francês que mostra didaticamente as raízes da crise. Partindo do seguinte dado: há vinte anos acontece um fenômeno mundial de aumento da taxa de mais-valia e conseqüentemente da queda das massas salariais no mundo todo, isso permite uma super-liquidez de moeda que busca frenética e insanamente remunerações extravagantes para si. Ao fim de algum tempo, a finança autonomiza-se, impondo a sua própria lógica, e esquecendo que o volume de valor disponível depende do grau de exploração (do trabalho vivo) e que este não pode, apesar dos esforços dos capitalistas, crescer de forma exponencial. As crises financeiras são, por conseguinte, manifestações cíclicas da velha e marxiana lei do valor.

Voltei:
A crise imobiliária e mobiliária dos EUA não tem nada a ver com mais valia. Certa esquerda não lê e não entende absolutamente nada sobre os mercados, despreza os aspectos econômicos da vida e insiste na tola idéia de que a humanidade é movida pela gasolina da ideologia. A crise americana é cíclica, como tudo no capitalismo, e é resultado de uma bolha especulativa no setor mobiliário (ações) e imobiliário (imóveis). O valor desses bens estão muito acima do valor real. Sugiro, para melhor compreensão, a leitura de um texto do David Leonhard exatamente sobre este assunto: http://depositomaia.blogspot.com/2008/01/bem-vindo-nova-moderao-david-leonhardt.html., publicado no New York Times e na Folha na semana passada.
Mercado existe, está ai. Não é deus, mas é fato e fato social. É impensável imaginar hoje em dia uma sociedade sem mercado ou um mercado completamente controlado por um Estado.

O capital almeja o lucro. Isso é certo, mas não é só isso. A lógica do capital não é só essa. Nenhuma sociedade conseguiu se desenvolver econômica e socialmente desprezando o mercado. A crise soviética está intimamente ligada a sua economia exacerbadamente planejada e seu mercado burocratizado que não conseguiu vencer a revolução científico tecnológica. E o castelo de cartas do mercado socialista real desabou completamente e nada sobrou. É que são instituições montadas artificialmente pelo poder político. A história é sempre a mesma para quem acha que é possível criar mercado com canetaço e sangue ideológico. Não sei se este é o fim da história, porque uma das coisas que mais detesto é cair na síndrome de Nostradamus.







* fotos de Fernanda Zerbini


Quanto riso Ó! Quanta alegria

Mais de mil palhaços no salão

O Arlequim está chorando

Pelo amor da Colombina

No meio da multidão

Foi bom te ver outra vez

Tá fazendo um ano

Foi no Carnaval que passou

Eu sou aquele Pierrô, que lhe abraçou

Que lhe beijou, meu amor

A mesma máscara negra

Que esconde meu rosto

Eu quero matar a saudade

Vou beijar-te agora

Não me leve a mal

Pois é Carnaval

(Máscara Negra de Zé Kéti e Pereira Matos)

Glauco


Sobrevivendo a Bush


Sobrevivendo a Bush

A CARREIRA governamental de George W. Bush está chegando ao fim, e ele agora é um "lame duck" (um "pato manco"), um político em final de mandato. Boa parte de seu poder político se esvaiu, e os norte-americanos estão à espera de uma nova Presidência, no ano que vem. Mas é importante lembrar que Bush ainda tem quase um ano a cumprir no mais poderoso posto do planeta. Ele continua a exercer os poderes de comando supremo das Forças Armadas dos EUA. E ainda pode causar problemas. Tudo isso garante que, caso Bush tenha chance de agir unilateralmente uma vez mais para reafirmar seu poder, ele indubitavelmente o fará. Quanto a questões de política interna, ele precisaria da colaboração do Congresso, como o pacote de estímulo econômico para combater a ameaça de recessão, negociado com a liderança democrata da Câmara dos Deputados, deixou claro na semana passada. Mas a Constituição dos EUA impõe restrições muito menores às ações do presidente quanto a assuntos de política externa. Intrinsecamente, portanto, é muito mais provável que uma crise internacional sirva como catalisador às ações do presidente "pato manco". Assim, onde ocorrerá a próxima crise internacional? Ainda que as atenções dos especialistas estejam agora concentradas no "fundamentalismo islâmico", definido pelo líder entre os pré-candidatos republicanos à Presidência, senador John McCain, como o maior desafio do século 21, suspeito que não será essa a origem de uma nova crise. Afinal, os parâmetros do assunto inacabado estão bem definidos: a ameaça continuada da Al Qaeda; a insurgência no Iraque; a crise sem fim na Palestina; o confronto com o Irã; a instabilidade no Paquistão e no Afeganistão. Mas existe uma crise previsível fervilhando mais perto de casa, que terá grande impacto sobre a América Latina e com relação à qual os Estados Unidos estão presos a uma política inflexível e sujeitos à ação de poderosos grupos de interesses internos prontos a intervir, especialmente em um ano eleitoral; e o detonador dessa bomba-relógio já começou sua contagem regressiva. A "oportunidade" de Bush pode surgir em Cuba. Há dois fatores inevitáveis nisso. Um é a certeza de que Bush deixará o cargo em janeiro de 2009. O outro é que Castro morrerá. A incerteza envolve determinar se Castro morrerá antes de janeiro do ano que vem ou sobreviverá à Presidência de Bush. Castro sobreviveu a todos os presidentes norte-americanos desde 1959, e com sorte é possível que o faça de novo. Mas, caso ele venha a morrer enquanto Bush continuar presidente, e em meio a um ano de eleição presidencial nos Estados Unidos, podemos esperar por uma infinidade de problemas.


Artigo de Kenneth Maxwell publicado hoje na Folha.

* foto de Bush usando crocs.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Eu quero meu cartão corporativo


Eu quero ser ministro do Lula para ter direito ao meu cartão corporativo. Vou frequentar bistrôs, lounges, baladas e os melhores resorts. Vou tomar os melhores malbecs e as boas saiquirinhas de morango. Vou ao Porcão no Rio e ao Fasano em São Paulo. Vou ao carnaval da Bahia e aprender a dançar o frevo em Olinda. Vou andar de Aerolula e frequentar o famoso buteco do avião. Eu quero meu cartão corporativo. E já!

Coisas do Brasil


Este Brasil é mesmo muito peculiar.

A Consultoria Jurídica do Ministério da Previdência emitiu parecer garantindo cobertura previdenciária a sem-terra que trabalham em área invadida, seja ela pública ou privada.

Ou seja, a previdência ( e a providência) protege quem faz ato ilegal: porque invadir área pública ou privada é ainda no Brasil do Estado de direito, ato ilegal. Ou não é?

fonte: Folha

Iotti


terça-feira, 29 de janeiro de 2008

A Crise do Fórum Social Mundial - Ignácio Ramonet


Leio no Diario Gauche de hoje uma entrevista interessante de Ignacio Ramonet, redator-chefe do jornal Le Monde Diplomatique em entrevista ao jornal alemão Freitag (25/1), sobre a crise política do Fórum Social Mundial. Depois eu volto.


Que futuro aguarda o Fórum Social Mundial?


Infelizmente, os movimentos sociais internacionais no momento tem sido incapazes de encontrar uma forma de articulação mais consistente que lhes permita agir unitariamente. Não está em condições de fixar objetivos que sigam uma mesma linha.


Isso impede os movimentos sociais de responder adequadamente à situação atual?


Exato. Atravessamos diferentes fases. A primeira consistiu em definir a globalização. Em meados dos anos 90 ainda não existia o movimento porque não se sabia contra quem lutar. Foi preciso que muitos intelectuais e muitas forças políticas definissem conjuntamente o inimigo e, o inimigo era a globalização. Na segunda fase se juntaram todos do Sul ao Norte na luta contra a globalização. Têm-se evidentemente a impressão de que essas êxitos – particularmente, a fundação do Fórum Social Mundial – acabou por paralisar o movimento. O movimento é hoje, potencialmente, forte, como nunca antes. É, em escala planetária, a única força em alguma medida organizada que resiste à globalização, mas ele não sabe o que fazer com essa força. Desperdiçaram-se oportunidades, ao menos eu vejo assim. Hoje estaríamos em condições de levar a cabo lutas em escala mundial. Lembre-se apenas das grandes manifestações contra a guerra no Iraque. Chegou a hora de que movimentos, como o Fórum Social Mundial, deixem de ser movimentos de resistência e entrarem em uma nova etapa com outras formas de luta.


Por que afirma isso com tanta ênfase?


A ofensiva ideológica da globalização prossegue. Constatamos que o movimento já não amedronta os dominadores. Apenas falam dele. Desde que a Attac entrou em crise na França, a imprensa francesa já não fala da Attac, tampouco fala do Fórum Social Mundial. Preocupa esse silêncio, porque demonstra que os outros tem ganhado a batalha e, desde logo, por causa da dispersão. Por isso, creio que as organizações principais que constituem o Fórum Social Mundial estão obrigadas a se colocaram a seguinte pergunta: O que será de nós? O que devemos fazer? Em torno de tudo isso, a questão do poder se torna importante. Todo o movimento se formou com a base na idéia que não se pode tomar o poder. Eu me pergunto se isso continua sendo verdadeiro. A experiência na América Latina mostra que com o poder nas mãos se pode fazer algo. Isso na Europa é mais difícil devido a camisa de força que se transformou a União Européia.


Meu comentário:


Pois é, o movimento Attac que tinha uma lista de discussão brasileira na internet e que foi, de certa forma, uma das semente do Fórum Social Mundial parece que foi para o espaço. E o Fórum Social Mundial também não conseguiu se organizar. O problema é exatamente esse, de organização e de gestão. A esquerda não teve competência de tocar o assunto para adiante. E por que isso aconteceu? Porque ela perdeu a referência em relação à sociedade. Ou seja, certa esquerda continua inflexível a certas idéias apostando no discurso oco e caduco do anticapitalismo, enquanto que a sociedade quer mais é ingressar e se preparar no mercado de trabalho. O discurso antimercado, antiglobalização, anticapital que foi a tônica de boa parte do FSM foi para o espaço. O FSM se fechou e se afundou junto com sua própria ideologia. Enquanto isso, Davos resiste e atrai os holofotes de tudo. Em Davos se encontra a pluralidade e a diversidade que nunca se encontrou no FSM.

A Façanha de Fogaça


O prefeito de Porto Alegre, José Fogaça (PMDB) candidatíssimo à reeleição, terá quatro vezes mais recursos para investimento do que no primeiro ano de gestão, em 2005.


Segundo a Folha, Fogaça conseguiu essa façanha racionalizando despesas e reservando investimentos: "cortou gastos com custeio e reduziu investimentos no primeiro ano. Além disso, os servidores passaram a ganhar aumento uma vez por ano. Até 2004, o os salários eram corrigidos a cada dois meses. Ele assumiu com déficit de R$ 75 milhões e em 2007 teve superávit de R$ 35 milhões."


Se Fogaça conseguiu essa grande façanha ele tem todo o direito do mundo de utilizar esses recursos para fazer obras de melhorias na cidade. Poderia começar, por exemplo, na limpeza das pontes da Av. Ipiranga ( a ponte da Azenha está sendo restaurada) e fazer uma nova urbanização naquele trajeto. Poderia, também, fazer parcerias com a iniciativa privada em relação à orla do Guaíba, fazendo cantos e recantos e caminhos para caminhadas, corridas e bicicletadas interligando a Vila Assunção à Usina do Gasômetro. E está na hora de Porto Alegre ter mais ciclovias.


Fazendo isso, Fogaça vai poder ter a certeza de sua reeleição.


* Foto da Ponte da Azenha

O Brasil Precisa de um Luc Ferry


O Brasil precisa de um Luc Ferry para combater o Brasil arcaico. Essa foi a primeira imagem que apareceu na minha cabeça quando assisti ontem no Jornal Nacional a notícia sobre a decisão do arcebispo de Recife e Olinda, dom José Cardoso Sobrinho, de entrar com representação no Ministério Público com o objetivo de obter, através da Justiça, um veto estadual à contracepção de emergência -isto é, à distribuição da chamada pílula do dia seguinte, que o Vaticano considera abortiva.

Para quem não sabe, Luc Ferry é filósofo e foi ministro da educação do governo Chirac e proibiu que os alunos das escolas públicas francesas utilizassem símbolos religiosos. Tal medida reduziu e muito a violência, a intransigência e a intolerância nas escolas francesas.

A Igreja Católica se acha com o poder de definir o que é certo e errado. Nenhuma igreja pode ter esse poder. A humanidade não vive mais na época medieval. Esse tempo passou. É passado. O tempo presente é do Estado laico. E apenas o Estado democrático de direito que elege o político governante é que tem o poder de determinar políticas de saúde pública.
Concordo integralmente com o editorial da Folha de S. Paulo de hoje, no sentido de que o arcebispo, entretanto, extrapola as fronteiras da moral privada quando pretende impor a conduta católica a todos os pernambucanos, partilhem eles ou não dos dogmas da igreja. A sociedade já definiu, pelos canais competentes e com o auxílio da ciência, que o emprego da pílula do dia seguinte não configura aborto.As autoridades sanitárias têm a obrigação de tentar reduzir os índices de contaminação por doenças sexualmente transmissíveis e de gravidezes indesejadas. Devem para tanto, usar de todos os recursos legais à disposição, aí incluída a pílula.Faria melhor a arquidiocese de Olinda se observasse uma valiosa lição do Evangelho: "Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus".
E o Arcebispo de Recife e Olinda que se queixe ao Bispo

Glauco


segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Os Interesses do "Consenso Bolivariano"


O fato é que Álvaro Uribe está ganhando a guerra contra as FARC.

E qual o plano? Cercar as FARC e negociar a liberação dos reféns.

Mas os parentes dos reféns acham essa estratégia arriscada porque pode colocar em risco a vida das vítimas. "Isso nos mostra que ele [Uribe] não se importa com a vida dos seqüestrados", disse Yolanda Pulecio, mãe da franco-colombiana Ingrid Betancourt, capturada em 2002.Pulecio lembrou a morte, em junho passado, de 11 ex-deputados reféns das Farc. A guerrilha diz que eles morreram em meio a combates. O governo, que foram mortos pelos rebeldes."

Interessante, as FARC sequestram, mantém pessoas no cativeiro por 5,6, 10 anos e algumas são executadas e a culpa de tudo isso é do Uribe que está ganhando a guerra.

E qual o interesse de Chávez em tudo isso? Enfraquecer Uribe que conta com o apoio americano para inserir a Colômbia no contexto ou no "consenso" bolivariano. Esse interesse de Chávez é o mesmo das FARC. Para Chávez -- que encarna exatamente o pensamento simplista e epidérmico de certa esquerda latino americana -- o grande vilão, o grande diabo, é sempre o mesmo, o império dos EUA. E as FARC, Chávez, o que são?

No início da década de 90 criou-se o termo Consenso de Washington. Hoje na América Latina a elite de certa esquerda está criando um novo "consenso", o "Consenso Bolivariano". Tal como o de Washington esse também parece ser imposto de cima para baixo.

Um Negro na Casa Branca? MIchael Kepp


Um negro na Casa Branca?

Alguns amigos brasileiros me perguntaram recentemente de que maneira Barack Obama poderia ter chances grandes de se tornar o próximo presidente dos Estados Unidos, uma sociedade racista na qual os negros são uma minoria da população (13%). A questão me fez perceber que a complexa sociedade norte-americana não é fácil de compreender, para os estrangeiros. Se, como diz Jobim, "o Brasil não é para principiantes", tampouco o são os EUA. Ao contrário do Brasil, respondi a esses amigos, os negros e brancos norte-americanos tendem a manter a distância, socialmente. Eles não interagem muito, seja nos ônibus ou nos bares, raramente formam amizades inter-raciais e há poucos casamentos mistos. Por quê? Uma história de segregação racial e mútuo preconceito os mantém separados. Mas, ao mesmo tempo, os ambientes de trabalho norte-americanos estão se tornando mais e mais integrados. Desde o movimento dos direitos civis, nos anos 60, os negros dos EUA melhoraram sua situação econômica e formaram uma robusta classe média. Isso permitiu que atingissem posições de poder -como governadores de Estados ou presidentes de empresas- anteriormente reservadas aos brancos. À medida que os brancos transferiam poder à classe média negra, ao longo dos últimos 40 anos, eles começaram a se sentir mais confortáveis com essa transferência -sobretudo quando os negros que recebem o poder se sentem confortáveis consigo mesmos. Obama é um desses negros. O movimento dos direitos civis também o beneficiou, embora ele não provenha de suas fileiras. E porque ele não emprega a retórica veemente desse movimento, não parece ameaçador aos brancos. Essas razões explicam por que ele tem o apoio não só de muitos eleitores brancos como de líderes de seu partido no Senado, onde ele está há apenas dois anos. Uma das razões para que Obama tenha vencido a primária de seu partido em Iowa, Estado com população 98% branca, e para que ele tenha quase derrotado Hillary Clinton nas primárias de Nevada e New Hampshire, onde a composição demográfica é semelhante, é o fato de ele próprio não dar destaque ao fator raça. Só na Carolina do Sul, onde os negros são 50% do eleitorado de seu partido, a raça influenciou sua esmagadora vitória. Porque Obama passou parte de sua infância na Indonésia, ele não é cego à maneira pela qual outros povos enxergam os EUA. É por isso que se opôs à guerra no Iraque bem antes que ela se iniciasse. É por isso que ele deseja suavizar as divisões dentro do país e aquelas entre os EUA e o resto do mundo, pondo fim à guerra. Sua visão multicultural faz dele o perfeito arauto dessa mensagem inspiradora. De certa maneira, Obama é o Sidney Poitier da política norte-americana. Poitier foi o primeiro ator negro a estrelar em papéis criados deliberadamente para desafiar os estereótipos raciais. Em "Adivinhe Quem Vem para Jantar", filme de 1963, ele interpreta um médico que supera as objeções dos pais da mulher com quem pretende se casar. Como? O fato de que ele tenha estudado em Harvard e planeje trabalhar com os pobres ajuda (foi isso, aliás, que Obama fez ao se formar em Harvard). Mas o principal motivo para que os conquiste é a maneira pela qual se define. Como ele diz ao seu pai, um homem de classe operária: "Você se define como homem de cor, e eu me defino como homem". Obama é um dos muitos negros apreciado pelos brancos (e por pessoas de outras raças) porque desafia os estereótipos raciais. Outro exemplo é Chris Rock, humorista que nos permite rir sobre a cultura negra enquanto, ao mesmo tempo, conta piadas que permitem aos negros rirem sobre a cultura branca. Outro caso é o de Morgan Freeman, que sempre encarna personagens dignos, e interpretou Deus em "O Todo-Poderoso", filme de 2003. Para perceber até que ponto isso representa uma quebra de precedentes, imagine se no filme "Deus é Brasileiro", também de 2003, o papel do Criador fosse interpretado não por Antônio Fagundes mas por um ator negro. Caetano Veloso disse certa vez que Nova York não é os EUA, mas que uma cidade tão multirracial e multicultural só poderia existir nos EUA. O mesmo poderia ser dito sobre Obama. Ele não é sinônimo dos EUA, mas apenas nos EUA, país em que os brancos predominam, o racismo tem raízes profundas e os ambientes de trabalho se tornaram mais integrados racialmente, um negro poderia ser presidente.


Artigo de MICHAEL KEPP , jornalista norte-americano radicado há 25 anos no Brasil, é autor do livro de crônicas "Sonhando com Sotaque - Confissões e Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record) - publicado na Folha de hoje.
Tradução de PAULO MIGLIACCI

Ser Pobre Não é Desculpa - Alba Zaluar


Ser pobre não é desculpa


UM DOS NÓS na discussão sobre violência e criminalidade no Brasil está na correlação entre pobreza e criminalidade que divide a opinião de estudiosos e militantes. De um lado, os que tomam algumas estatísticas oficiais, fruto do registro policial, como provas de que o problema são os favelados, migrantes e desempregados pobres. Do outro, aqueles que consideram que ser pobre é desculpa para tudo, inclusive para o homicídio. Tanto um quanto outro estão equivocados. O registro policial depende de muitas práticas policiais que sempre deram preferência aos pobres neste país, deixando impunes as pessoas de maiores escolaridade e nível de renda quando infringem a lei. Daí falar-se de profecia autocumprida as estatísticas que mostram apenas crimes cometidos por pessoas pobres. Crimes econômicos e de mandantes só muito recentemente passaram a merecer atenção da polícia, especialmente a federal. Entretanto, ser pobre não é razão para cometer crimes. Há tempos discute-se a punição dos que cometem crimes graves com o argumento de que não tiveram oportunidades ou alternativas. Para atividades econômicas ilegais, esse argumento encontra respaldo bastante difundido na população também. Mas nunca para os crimes contra a pessoa, especialmente estupro e assassinato. Porém há entre militantes de esquerda a propensão para querer as mais severas punições para jovens de classe média que participam de atividade econômica ilegal e o esquecimento ou perdão para os jovens pobres que cometem crimes contra a pessoa, mesmo os mais condenados pela população. O filme "Meu Nome Não É Johnny" conta a história de um desses jovens de classe média que, sem nem saber como e por que, vão se envolvendo na atividade do tráfico. A história contada é de um daqueles que conseguem manterem-se free-lance sem participar da violência de quadrilhas e comandos. É um filme emocionante e convincente. Pode ajudar outros jovens a evitar as armadilhas do dinheiro fácil e consumo orgiástico pelos limites da lei e da moralidade. A cena mais comovente é a que narra a compreensão da juíza sobre a trajetória do jovem e a sua capacidade de recuperação. Os anos de cadeia e de manicômio judiciário são de sofrimento atroz e parecem estar na medida para minar a inconseqüência do jovem. Só que militantes que defendem o direito do pobre menor assassino ficar livre aos 18 anos preparam um manifesto para criticar essa sentença "leve" que atribuem à família do jovem, à qual pertence famoso advogado defensor dos direitos civis durante o regime militar.


Artigo de Alba Zaluar publicado na Folha de hoje.
*fotografia de Ricardo Alcaide.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

A Velha Desculpa de Sempre


Leio no RS Urgente um texto que o jornalista Marco Weissheimer publicou para o site de esquerda CArta Maior acerca do filme O Caçador de Pipas, que está no cinema, mas que ainda não vi (cena do filme acima)


Não pretendo aqui falar de um filme que não vi, mas de um comentário que foi feito no texto do Weissheimer. Depois eu volto:


O filme “O Caçador de Pipas”, dirigido por Marc Foster, tem o mérito de apresentar um painel sobre a cultura, as tradições e a vida no Afeganistão, a partir do relato sobre a amizade de dois meninos afegãos. É uma obra de ficção mesclada com uma tentativa de painel histórico sobre um período da história do país que compreende a queda da monarquia nos anos 70, a invasão dos soviéticos e a ascensão dos talibãs ao poder. É aí, em seu pano de fundo histórico, que os méritos definham e os problemas florescem. O filme é uma adaptação do best-seller do médico Khaled Hosseini, nascido em 1965 em Cabul e que vive nos Estados Unidos desde 1980. O livro foi escrito inteiramente na Califórnia. Hosseini só voltou ao Afeganistão depois do livro ter sido lançado, 27 anos após ter deixado o país. Essa distância espacial e temporal ajuda a entender as omissões históricas e a visão generosa do autor com o papel dos EUA na destruição de sua terra natal.
Quando visitou o país, após a publicação de seu livro, Hosseini ficou chocado. “Infelizmente, o que vi por lá era pior do que aquilo que imaginei e narrei. A destruição do país é impressionante, muito triste”, declarou em entrevista à revista Época. No livro (e no filme), o escritor é grato pela acolhida que teve nos EUA. Ao imaginar como poderia ter sido a vida do personagem Hassan, caso tivesse conseguido fugir para a América, escreve que o amigo estaria vivendo em um país “onde ninguém se importa com o fato de ele ser um hazara”. Essa visão que é escancarada em todo o filme, mostra os soviéticos e os talibãs como seres monstruosos e pervertidos sexualmente, mas omite alguns “detalhes” históricos relacionados ao papel que os EUA tiveram no fortalecimento dos talibãs e na sua chegada ao poder. Assim como ocorreu com Saddam Hussein no Iraque (contra o Irã), os talibãs foram aliados dos EUA no Afeganistão (contra os soviéticos). O civilizada e laico Ocidente foi cúmplice direto dos terríveis crimes cometidos pelos talibãs.
Se Hosseini não tivesse escrito o livro inteiramente na Califórnia, baseado apenas em sua memória e imaginação, talvez tivesse produzido um relato um pouco mais equilibrado historicamente. Ao final do filme, do ponto de vista histórico, o que fica é o seguinte: a selvageria soviética e talibã, de um lado, e o papel salvador e civilizatório do Ocidente, do outro. Nenhuma referência sobre como países como EUA e Inglaterra – e seus aliados na região, como Paquistão e Arábia Saudita -contribuíram decisivamente para tornar o país um monte de ruínas. Clique
AQUI para ler mais.


Voltei.


É questionável que EUA e Inglaterra tenham contribuído decisivamente para tornar o Afeganistão um monte de ruinas. A desculpa parece ser sempre a mesma; ou seja os grandes culpados pelas mazelas e violência mundial vão ser sempre os EUA e os países europeus. E a história não é bem essa, porque todos os fatos têm os seus contextos. Os EUA apoiaram o Taliban no contexto da guerra fria. O muro de Berlim caiu e esse apoio foi para o espaço. E o regime Taliban foi sim um dos mais estúpidos, violentos e crueis que a humanidade já presenciou e foram exatamente os EUA quem libertaram o povo sofrido do Afeganistão das garras do Taliban. Se não fossem os EUA o Afeganistão estaria ainda escravo do Taliban. Contudo, o Afeganistão de hoje não é um mar de rosas (talvez seja de papoulas que geram heroinas), mas tudo tem o seu contexto e a história dos afegães, suas culturas, sua rígida religião, seus hábitos é muito mais complexa e por isso não pode ser explicada pela visão maniqueísta ideológica que a nossa esquerda brasileira tanto gosta de usar e abusar. Nada é tão simples assim.

Linguagem do Preconceito


No blog do Zé Alfredo, Ainda a Mosca Azul (o Neo do Matrix recebeu a mensagem para seguir a mosca azul) foi postado um texto do Bernardo Kucinsky chamado a linguagem do preconceito.

Kucinsky - autor das cartas ácidas - detona todos aqueles que criticam o presidente Lula, porque dizem que ele nunca sabe de nada ou que não entende e se confunde.

No resumo de tudo, ele diz o seguinte: Virou moda dizer que “Lula não entende das coisas”. Ou “confundiu isso com aquilo”. É a linguagem do preconceito, adotada até mesmo por jornalistas ilustres e escritores consagrados."

Pois, é. Existe outra linguagem do preconceito que é da ditadura do politicamente correto. Se o presidente é de origem humilde, imigrante nordestino, torneiro mecânico ele vira santo e deve ser canonizado para todo o sempre, amém. Não se pode tocar no assunto e quem tocar é tido como golpista, fascista, direitista ou nazista.
* Foto de Marcos Nozeman

Bem-Vindo à Nova Moderação - David Leonhardt


Para quem quiser entender o que efetivamente está acontecendo com os EUA e o risco de recessão, tendo em vista a crise hipotecária e de ações (o valor dos imóveis e das ações nos EUA estão muito acima do real), sugiro a leitura do artigo abaixo de David Leonhardt do New York Times, publicado na Folha de hoje.


* A imagem acima é a capa do excelente disco do Supertramp de 1975, "Crisis, what crisis?". Tudo a ver.

Bem-vindo à nova moderação

ENTÃO, ATÉ que ponto isso pode chegar? Até alguns meses atrás, era senso comum que a economia americana funcionava de modo muito mais suave do que no passado. As expansões econômicas duravam mais e as recessões eram mais curtas e mais brandas. A inflação tinha sido domada. A disseminação do risco financeiro, pelas instituições e pelo mundo, tinha reduzido as probabilidades de uma fusão. Em 2004, Ben Bernanke, então um dos governadores do Federal Reserve (Banco Central americano), emprestou uma frase de um trabalho acadêmico para dar um nome a esses desenvolvimentos: "a grande moderação". Hoje, porém, a grande moderação não está parecendo tão grande -ou tão moderada. O recente turbilhão financeiro tem muitas causas, mas elas estão ligadas ao temor básico de que alguns dos sucessos econômicos da última geração ainda possam se revelar uma miragem. Isso ajuda a explicar por que os problemas do mercado de hipotecas "subprime" podem ter-se espalhado pelo sistema financeiro e agora pelo mundo todo. Na terça-feira, Bernanke, hoje presidente do Fed, conduziu o maior corte de taxas de juros em um dia na história do Banco Central. Agora parece que a grande moderação dependeu -em parte- de uma enorme bolha especulativa, primeiro em ações e depois em imóveis, que escondeu as arestas da economia. Todo mundo, de compradores de primeiras casas a executivos de Wall Street, fez apostas que não compreendia totalmente e gastou dinheiro como se essas apostas não pudessem dar errado. Nos últimos 16 anos os consumidores americanos aumentaram seus gastos gerais a cada trimestre. Agora alguns temem a revanche. Martin Feldstein, a eminência parda dos economistas republicanos, diz estar preocupado que a economia "possa escorregar para a recessão e que a recessão possa ser longa, profunda e severa". No debate presidencial democrata de segunda-feira, Barack Obama fez a mesma afirmação: "Podemos estar escorregando para uma recessão extraordinária". No fôlego seguinte, é claro, Obama sugeriu que as políticas certas ainda poderão evitar uma recessão, e Feldstein disse que o declínio ainda não é garantido. E boa parte da grande moderação ainda é real. Os computadores permitem que os administradores dirijam seus negócios com maior eficácia e evitem alguns dos estouros e explosões do passado. O Fed e os bancos centrais aprenderam com seus erros. Mas uma recessão hoje é algo mais provável. Ela pode até já ter começado. O Fed da Filadélfia relatou na terça-feira que a economia encolheu em 23 Estados no mês passado, incluindo Ohio, Missouri e Arizona, e está estagnada em sete. Califórnia e Flórida, com os valores das casas despencando, poderão entrar na lista em breve. A maior pergunta é quão severa a recessão será se realmente acontecer. As duas últimas, em 1990/91 e 2001, foram bastante brandas, o que é uma parte crucial da mística da grande moderação. Mas há três motivos para pensar que talvez a próxima não seja branda. Primeiro, Wall Street ainda não abriu o jogo. Mesmo depois da semana passada, quando o J.P. Morgan e a Wells Fargo anunciaram prejuízos de bilhões de dólares em seus negócios de crédito ao consumidor, firmas de serviços financeiros provavelmente anunciaram menos que a metade de suas perdas relacionadas a hipotecas, segundo a Economy.com da Moody's. Elas não estão sendo desonestas; apenas ainda não destrincharam todos os seus complexos investimentos. "Parte da grande incerteza é onde os corpos estão enterrados", disse Raghuram Rajan, ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional. Desta vez as firmas enfrentam prejuízos reais, que quase certamente vão reduzir os empréstimos, e o crescimento econômico, este ano. O segundo problema é que os imóveis e as ações continuam razoavelmente caros. Isso mostra como as bolhas eram grandes: apesar de declínios recentes, os preços das ações e dos imóveis residenciais ainda não voltaram às normas históricas. David Rosenberg, um economista da Merrill Lynch, diz que o mercado de ações está supervalorizado em 10% em relação aos lucros corporativos e às taxas de juros. As ações geralmente caem mais do que deveriam durante um mercado baixista, assim como sobem mais do que deveriam em um altista. A situação dos preços das casas parece pior. Até 2000, a relação entre preços de casas e aluguéis era bastante estável. O mesmo se podia dizer sobre os preços das casas em relação à renda das famílias e às taxas de hipotecas. Mas o boom desta década mudou isso totalmente. Para que os preços voltem à antiga norma, ainda precisariam cair 30% na maior parte da Flórida, da Califórnia e do sudoeste dos EUA, e cerca de 20% no nordeste. Isso pode acontecer rapidamente, ou os preços poderão ficar estagnados durante anos, enquanto as rendas se equiparam. Ações e casas mais baratas beneficiarão muita gente -sobretudo quem ainda não tem uma casa. Mas as quedas de preços também levarão ao terceiro grande problema. Os gastos do consumidor continuaram aumentando, sobretudo porque as famílias usaram sua riqueza recente, muitas vezes tomando empréstimos para suplementar a renda. Esse aumento da dívida -como coloca secamente um estudo recente co-escrito pelo vice-presidente do Fed- "provavelmente não se repetirá". Por isso, assim como o aumento dos valores dos ativos abafou as últimas duas crises, em 1990/91 e 2001, a queda dos valores poderá agravar a próxima. "O que as pessoas fizeram foi uma suposição de que os preços poderiam continuar no ritmo em que estavam", disse Ed McKelvey, economista do Goldman Sachs. Certamente há algumas forças que empurram na outra direção. Fora de Wall Street, os balanços das empresas parecem notavelmente fortes, e a recente queda do dólar ajudará as companhias americanas a vender mais no exterior. Mas é difícil não acreditar que a economia pagará um preço pelo surto especulativo das últimas duas décadas, seja passando por uma dura recessão ou um período prolongado de crescimento decepcionante. Como está acontecendo, os bancos terão menos disposição a emprestar, as famílias terão menos disposição a gastar e os investidores terão maior sensibilidade aos riscos. Bem-vindos à nova moderação.
Tradução de LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES

Vão-se os Sonhos, Ficam os Anéis - Eduardo Graeff


Artigo da Folha de hoje de Eduardo Graeff.


Vão-se os sonhos, ficam os anéis


"BURGUESIA burocrática" era como o historiador Caio Prado Jr. chamava o empresariado caudatário dos favores do Estado varguista. Fernando Henrique Cardoso falou em "anéis burocráticos" para se referir às relações especiais das grandes empresas com a área econômica do governo no tempo da ditadura. Delfim Netto foi senhor desses anéis, agenciando negócios e distribuindo proteção tarifária e subsídios como todo-poderoso ministro da Fazenda do general Médici. Os americanos chamam "crony capitalism" a alavancagem de negócios por relações pessoais e/ou troca de favores entre empresários e altos funcionários públicos. Eles depreciam nesses termos quase todas as variedades de capitalismo que não vestem o figurino liberal, do Japão à América Latina, passando pelos tigres asiáticos e pela África. Não que os Estados Unidos estejam livres da praga. Veja as ligações empresariais do clã dos Bush, para ficar num exemplo atual. Tudo isso me vem à cabeça a propósito de duas notícias recentes: reportagem da revista "Piauí" sobre as andanças de consultor internacional do ex-ministro José Dirceu; e a compra da Brasil Telecom pela Telemar, acertada na expectativa de que um decreto de Lula virá legalizar a transação. Foi Dirceu quem ligou uma coisa à outra. Ele mencionou para a revista uma conversa que teria tido com Lula sobre os milhões investidos pela Telemar na firma de videogames do filho do presidente. E citou entre seus clientes o empresário mexicano Carlos Slim, cuja Telmex teria sido preterida na compra da Brasil Telecom. Lula teria mandado Dirceu não "encher o saco" com o tema da sorte grande de Lulinha. Na certa se irritará de novo se for questionado agora. Chateação indelegável, já que precisam da assinatura dele no decreto que beneficia quem beneficiou seu filho. Chato mesmo é intuir que isso pode não ser a exceção, mas uma nova regra nas relações do governo com grandes empresas. Veja o que acontece no setor elétrico. Questionado sobre sua trajetória de revolucionário a consultor de empresas, Dirceu se queixou de que não teve escolha após perder o mandato de deputado e os direitos políticos. Quem sabe ele está esperando a chuva passar, como na encarnação de negociante que teve no interior do Paraná. Quando o sol da revolução voltar a brilhar no horizonte, ele pega um avião para Havana ou Recife e pede para o cirurgião: "Desfaz essa cara de consultor e implanta aí uma barba". Bizarro, mas improvável. Encarem a realidade, companheiros e companheiras: com todo o entusiasmo que proclamam pela Revolução Cubana, hoje o negócio de Lula e Dirceu é outro. Em 2002, quando contrataram os serviços de Marcos Valério e Duda Mendonça, fizeram uma opção séria. Seu mergulho no mundo dos negócios não é camuflagem passageira, é para toda a vida. Só que o mundo dos negócios que eles têm na cabeça não é bem o capitalismo liberal. Não sei como eles mesmos chamariam. "Capitalismo dos bons companheiros"? O sistema emergente pode não ter nome, mas tem justificativa e modelo: Coréia do Sul. Lá, o governo se lixa para a ortodoxia liberal. Intervém no mercado, banca vencedores, subsidia perdedores. A corrupção é grande, dizem. Mas o capitalismo coreano é um sucesso de crescimento e inovação. Esprema algum alto funcionário do governo Lula metido em altas transações e ele pode sair com a mesma história de Dirceu na "Piauí": facilitar negócios, abrir portas para investidores, é tudo pelo bem do Brasil. No caso da telefonia, para criar megaempresa nacional que faça frente às estrangeiras. Qualquer outro bônus é secundário perto da satisfação patriótica. Não tenho fé no capitalismo liberal. Nem sei bem por que o capitalismo não liberal é um sucesso na Coréia, um horror na África e, no Brasil de Delfim Netto, foi do sucesso à crise em dez anos. Duas coisas eu sei. Primeiro, a concorrência faz bem ao capitalismo, sobretudo ao consumidor. O sucesso da Coréia tem a ver, parece, com a capacidade que governo e grandes empresas tiveram de se organizarem para concorrer no exterior. Lula poderia assinar decreto para ajudar a Telemar a se expandir... no México, por exemplo. E não detonar as regras de concorrência da telefonia brasileira -herança bendita do governo FHC. Segundo, capitalismo não liberal não combina com democracia. Pois não se fia na estabilidade e impessoalidade das regras, mas em favorecimentos pessoais. E é muito arriscado fazer investimentos de longo prazo nessa base se pessoas e partidos no governo mudam a cada quatro ou oito anos. A não ser, talvez, se os negócios alavancados gerarem dinheiro para cooptar aliados, amaciar a imprensa, comprar eleições etc. Mas aí não estamos falando de democracia, não é? Não, pelo menos, da democracia pela qual lutamos. Será que esse foi outro sonho do qual os novos senhores dos anéis abriram mão?
EDUARDO GRAEFF, 58, é cientista político. Foi secretário-geral da Presidência da República no governo FHC.
*foto de Cecil Beaton publicada na revista Vogue em 1937.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Minhas Imagens do FSM







O Maia tirou algumas fotos do Fórum Social Mundial que aconteceu em Porto Alegre em janeiro de 2005. Elas estão ai em cima.

Duas Cartas do Início do Século Passado


No blog da Radioweb República leio duas cartas. Uma de Oswaldo Aranha (foto acima) e a outra do "velho Chico Miranda" que, no início do século passado, era chamado de comunista..


A missiva é do Oswaldo Aranha é a seguinte.


Meu nobre Patrício – Somos da mesma terra e não podemos ser de idéias diversas. As tradições de seu nome, as de suas nobres atitudes cívicas, as das relações das nossas famílias, autorizam-me a escrever-lhe. Não seria digno deixá-lo sem a palavra do Rio Grande, sendo como é um dos descendentes da estirpe dos plebiscitários. Aguardemos os fatos para agir. O Rio Grande é um só para o que der e vier. Creia-me e creia que todos nós, nesta hora de angústia nacional, confiamos em quantos têm o nosso sangue e comungam nos ideais superiores da raça gaúcha. Oswaldo Aranha".


Comentário do dono deste depósito:


Lendo a carta do Oswaldo Aranha e que mostra como pensava a nossa elite no início do século passado. A carta é típica de um fidalgo: fala em tradição, em estirpe, em raça gaúcha. Ela fala de um tempo que passou, porque definitivamente a estirpe, a raça, ser filho de alguém ou de certas famílias não significa - hoje - o que significava antigamente. Isso mostra que o Brasil está mudando e para melhor.


E a carta do velho Chico Miranda segue abaixo:


"Direito de propriedade! É a resposta mais difícil ao questionário, pelas condições baixíssimas de mentalidade atual, sendo, ao contrário, simples e fácil diante da sã razão. A reforma dessa usurpação seria – eliminá-la.Os bens que a natureza pôs sobre o planeta para a existência e necessidade das espécies, nunca poderiam ser e não são objetos de domínio pessoal. Assim a terra, de que a pseudo-propriedade faz a sua base principal, como a água, como o ar, como a luz, só devem ser considerados o patrimônio eterno da humanidade. Os próprios bens produzidos ou alcançados pelo trabalho do homem não lhe devem valer senão como posse transitória, como transitória é a sua própria existência. Propriedade, não. Esse monstro filho da força e da depredação e pai de todas as iniqüidades – é preciso matá-lo...".


Comentário do Maia:


Propriedade não é direito absoluto e tem que ter sim uma função social. Mas o direito de propriedade é também fundamental. Nenhuma sociedade se desenvolveu social e economicamente com a extinção do direito de propriedade. Se algum vivente bem vivido souber de algum causo que atire sua funda. A bancarrota da antiga URSS está intimamente ligada a isso. Santa coincidência. Todo mundo queria ser proprietário de alguma coisinha, uma casinha, uma fazendinha, um carrinho e ter acesso ao profano: o fetiche da mercadoria. Mas o Estado Soviético e sua pata de ferro dizia, com sua voz de trovão: Não. Não, nunca, bem capaz, meu rapaz, esse bem é meu, porque ele pertence ao coletivo. E o pobre povo sempre perguntava e não cansava de se indagar: mas quem é esse tal de coletivo que a gente não conhece e nunca viu???

Vitória Moral de Quem, Cara Pálida?


No RS Urgente leio o seguinte:

O FSM foi uma vitória moral, porque ficou claro que os grandes temas da humanidade são discutidos em Porto Alegre, e não em Davos. Foi ainda uma vitória ideológica, porque ajudou a deslocar os grandes debates para a ótica social, articulando o econômico, o cultural e o político contra o economicismo”. Os anos se passaram e agora, em 2008, os grandes temas da humanidade não são mais discutidos em Porto Alegre e no Rio Grande do Sul. O berço do FSM é governado hoje pelo espírito de Davos. Clique AQUI para ler.

Comentário do ditador deste empório:

Da onde que o FSM foi uma vitória moral? Vitória de quem, cara pálida? Não é apenas em Porto Alegre ou no RS que os temas candentes da esquerda mundial não vão ser debatidos. Eles simplesmente não vão ser debatidos em lugar nenhum porque os organizadores decidiram (ou foram forçados a decidir!) que não vai haver FSM. Enquanto isso, em Davos -- onde o fórum nunca parou -- a discussão continua aberta ao pluralismo.

Cotas - Injustiças e Justiças?


A Zero Hora de hoje publicou duas versões sobre as cotas.

A primeira de uma estudante que tentou a vaga na medicina. Tirou o lugar 126 entre 140.

"Há um ano, me mudei de Lajeado para Porto Alegre para fazer cursinho e me preparar para o vestibular de Medicina. Estudei de manhã, de tarde e de noite, não tive feriado ou final de semana, abdiquei de namorar e sair com os amigos. Depois de tudo isso, consegui a nota que era necessária, mas não ganhei a vaga. Pelo boletim de desempenho, meu lugar foi o 126, e havia 140 vagas. Mas fui discriminada por não ser negra ou estudante de escola pública.Isso dá uma mistura de revolta e frustração. Minha mãe se esforçou para pagar escola particular a vida toda para que eu conseguisse vaga em uma universidade pública. Não temos dinheiro para que eu estude em uma instituição particular. Pagamos impostos que ajudam a manter a universidade, e agora não vão me aceitar?Vim com a minha mãe e a nossa advogada ao Ministério Público Federal para iniciar uma ação contra essa discriminação. Esse sistema é injusto porque discrimina quem alcançou o índice necessário."

O segundo depoimento é o seguinte:

"Trabalho em um escritório de Contabilidade, mas sonhava em passar no curso de Letras da UFRGS. Adoro a literatura brasileira, Machado de Assis. Quando decidi tentar a vaga pelas cotas para escola pública, meus amigos disseram que eu estava louco, que vou trocar um emprego por algo incerto. Mas era o meu sonho, e consegui a aprovação graças às cotas. Como o curso é pela manhã, vou ter de conseguir algum outro trabalho, pelo menos um estágio para pagar as passagens entre Alvorada e Porto Alegre e para alguns livros. Mas isso eu vejo depois, o importante é que consegui passar.Sei que as cotas são uma questão complicada e afeta o direito de outras pessoas, mas muita gente que é contra não conhece a realidade de uma escola pública. É difícil ter de trabalhar o dia inteiro, não ter estrutura, e conseguir passar em uma universidade como a UFRGS. Graças à reserva de vagas, isso foi possível para mim."
*foto de Jorge Bispo.

Desejo e Reparação


Desejo e Reparação (Atonement) de Joe Wright adaptação do livro Reparação de Ian McEwan (Cia das Letras) é um filme fabuloso e encantador. Impossível não gostar. É a história de uma sacanagem, um equívoco premeditado que altera - e como altera - a vida das pessoas. E quando o estrago está feito, surge o desejo, a culpa da reparação. O crime e o castigo. Mas como reparar a pena já cumprida por aquele que é inocente?

A direção de arte do filme é magnífica e uma cena épica (foto acima) chama a atenção. As tropas inglesas estão em Dunkerque, na Bélgica, em 39 ou 40 e a câmera se move por aquela paisagem cheia de soldados cansados e deprimidos que tentam se divertir na beira do canal da mancha, num parque de diversões decadente. É uma cena que dura alguns bons minutos e ela se espalha por todo aquele clima. É como se o cinema estivesse lá.

Por fim, duas grandes interpretações: de James McAvoy (que fez o médico no excelente O Último Rei da Escócia) e a menina Saoirse Ronan que faz a pequena Briony Tallis.
Recomendo o filme e a leitura do artigo de Contardo Calligaris publicado na Folha do dia 17 de janeiro.

ESTREOU NA sexta passada "Desejo e Reparação", de Joe Wright -uma adaptação, essencialmente fiel, da obra-prima de Ian McEwan, "Reparação" (ed. Companhia das Letras).O filme recebeu o Globo de Ouro para melhor drama e será certamente um sucesso de público. O livro de Ian McEwan é já um clássico e um best-seller. Por quê? Certo, Joe Wright fez um filme maravilhoso, e McEwan é um dos melhores escritores do momento. Mas não é só isso. Acontece que, na tela ou nas páginas, a história contada revela e ilustra um canto ao mesmo tempo escuro e familiar da subjetividade de todos nós, ou melhor, como se diz em psicologia, um mecanismo psíquico que governa nossa vida muito além do que a gente pensa. Resumindo: uma menina, dotada de uma certa predisposição artística e inspirada por uma paixão amorosa e pelo ciúme inconfessável que essa paixão produz, faz uma sacanagem que estraga radicalmente a vida da irmã assim como a do jovem que ama essa irmã e é amado por ela. A menina, ao crescer, tenta expiar sua culpa e descobre que ela poderá remir-se escrevendo não tanto a verdade do que aconteceu, mas uma história, um romance. É de uma vida dedicada à literatura que ela esperará a redenção: um romance reparará, enfim, o ato funesto que ela cometeu. Os distribuidores brasileiros do filme mudaram o título de McEwan. Acrescentando "desejo" a "reparação", eles fizeram uma escolha aceitável. Evitaram, em particular, a tentação de optar por algo como "Culpa e Reparação", termos ligados por uma implicação óbvia: a gente faz uma besteira, sente-se culpado e tenta acalmar a culpa reparando os danos -às vezes, trata-se de uma decisão consciente, outras vezes, nossa vida inteira se organiza ao redor de um projeto reparador sem que a gente saiba direito por quê (afinal, somos sempre culpados de alguma coisa, não é?). Claro, a culpa pode exigir reparação, mas talvez a vontade de reparar os tortos não seja apenas a conseqüência das culpas que nos tocam por causa de nossos malfeitos. Talvez essa vontade seja algo mais radical, mais originário. Foi uma grande psicanalista, Melanie Klein, que introduziu a "reparação" entre os conceitos da psicanálise. A idéia básica é a seguinte: um belo dia, o bebê se dá conta de que os objetos de seu amor são pessoas inteiras (por exemplo, ele descobre que não gosta apenas do seio que o alimenta, das mãos que cuidam dele etc., mas da mãe como um todo). Logo, nosso bebê começa a sentir a necessidade de "reparar" os "danos" que sua visão anterior do mundo teria causado -em suma, de reconstituir o corpo materno que ele havia consumido aos pedaços. Isso pode parecer bastante exótico aos olhos do leigo. Mas, para entender, basta considerar que nunca paramos de oscilar entre a vontade de despedaçar o outro e a vontade de reparar os estragos. Como assim? É simples e está no título do filme ("Desejo e Reparação"). No desejo sexual, em geral dilaceramos o outro desejado. Por exemplo, o desejo, sempre um pouco fetichista, prefere os pedaços: o decote, a voz, um olhar, a perna cortada pela cinta-liga, a queda dos rins, a forma dos lábios e por aí vai. Quando amamos a quem desejamos, o amor nos ajuda a reparar os efeitos do estilo carniceiro do nosso desejo: idealizamos o amado e a amada para que a beleza que neles enxergamos os preserve de nossa própria crueldade. Falando em beleza, justamente, Melanie Klein e seus primeiros alunos já pensavam que talvez a vontade ou a necessidade de reparar o mundo (despedaçado por nosso próprio desejo) fosse a força que anima nossas ambições estéticas. A incrível persistência humana na tentativa de criar algo bonito lhes parecia ser o jeito que inventamos para compensar a violência de nossa cobiça (não só sexual, aliás). Ou seja, os danos produzidos pela brutalidade de nosso querer nos dariam vontade de arrumar o mundo, de embelezá-lo, de fazê-lo ficar "bom de novo", como dizia Klein. Em suma, talvez nossa capacidade de criar algo misteriosa e extraordinariamente "bonito" (como o livro de McEwan e o filme de Wright) seja a maneira que encontramos para proteger aos outros, a nós mesmos e ao mundo contra a "loucura" de nossos desejos. Nota: é bem possível que nossa paixão ecológica de hoje tenha uma origem parecida. Afinal, ela tenta preservar e restaurar o que não sabemos deixar de destruir.

Elefante numa Sala Escura - Martin Wolf


TODOS ESPERAMOS que Alan Greenspan esteja certo quanto à economia dos EUA. O corte de juros decretado ontem pelo Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos) obterá sucesso caso Greenspan tenha razão. Mas muita gente teme que ele esteja errado. E muita gente, além disso, o culpa pela confusão atual. Assim, como a economia mundial veio a encontrar as atuais dificuldades?Uma opinião é a de que a crise tenha sido causada por um sistema financeiro que padece de sérios defeitos. Um e-mail que recebi nesta semana delineava a acusação: a crise, dizia a mensagem, era produto de "decisões extraordinariamente cobiçosas, imorais, movidas exclusivamente por autointeresse e prejudicadas por ilusões, tomadas ao longo dos anos 2000, e anteriormente, por seres humanos de carne e osso posicionados no topo da pirâmide das finanças".O argumento é o de que um sistema financeiro liberalizado, que oferece oportunidades de lucro extraordinário, exibe capacidade paralela de gerar erros que se perpetuam. A história é conhecida: inovação financeira e entusiasmo por riscos geram rápida expansão do crédito, o que eleva os preços dos ativos e assim justifica ainda mais expansão de crédito, e preços ainda mais altos para os ativos. Então chega o limite da alta no preços dos ativos, seguido por uma onda de vendas causada por pânico, insolvência em massa e por fim recessão. Isso implicaria que um sistema de crédito desregulamentado seja inerentemente instável e causador de instabilidade.Essa é a linha de argumentação associada a Hyman Minsky, que foi professor da Universidade Washington, em St. Louis, até morrer. George Magnus, do UBS, conquistou distinção ao definir a crise atual como um "momento Minsky": "Um colapso das estruturas de dívida e das instituições depois de uma queda nos preços dos ativos, a suspensão das funções bancárias "normais" e uma intervenção ativa dos bancos centrais". Tudo isso se segue a uma dependência extraordinária do crescimento do crédito.Os economistas poderiam oferecer explicações contrastantes para essa fragilidade. Uma delas está nos termos das respostas racionais a incentivos. Outra envolveria a miopia das pessoas. O contraste opõe inteligência iludida e tolice.Aqueles que enfatizam a racionalidade podem apontar facilmente para os incentivos a que o setor financeiro assuma riscos indevidos. Isso resulta da interação entre "informação assimétrica" -pessoas bem posicionadas sabem melhor o que está acontecendo- e "risco moral" a percepção de que os governos resgatarão as instituições financeiras caso número suficiente delas encontre problemas ao mesmo tempo.Há verdades evidentes nas duas proposições: caso, por exemplo, o governo britânico se sinta compelido a resgatar um banco de crédito imobiliário de porte modesto, como o Northern Rock, isso implica em imenso risco moral.Mas é evidente também que todas as partes envolvidas -devedores, credores e autoridades regulatórias- podem se deixar varrer pelas marés humanas de euforia e pânico. Errar é humano. Esse é um dos motivos para que a regulamentação raramente contrarie os ciclos econômicos: as autoridades também se deixam arrastar. A desregulamentação financeira e a securitização do ciclo econômico mais recente encorajaram um círculo incomumente amplo de pessoas a acreditar que podiam sair ganhadoras, enquanto os riscos, e os custos, caberiam a terceiros.Mas existe também uma perspectiva diferente. O argumento, nesse caso, é o de que a política monetária dos EUA foi mantida frouxa demais por tempo demais, depois do colapso da bolha de Wall Street, em 2000, e do atentado terrorista de 11 de setembro de 2001. É uma opinião crítica bastante difundida entre os economistas. Ela é igualmente popular nos mercados financeiros. "A culpa não é nossa; a culpa é de Alan Greenspan, aquele assoprador serial de bolhas".O argumento de que a crise é produto de séria desordem na política monetária surge em três variantes: a visão ortodoxa é a de que um erro foi cometido; uma segunda vertente, menos ortodoxa, sustenta que o erro foi intelectual -a determinação do Fed de ignorar os preços dos ativos na formação da política monetária; uma terceira visão, ainda menos ortodoxa, é a de que dinheiro criado artificialmente é inerentemente instável. Tudo isso será resolvido quando, como Greenspan acreditava, o mundo retornar ao ouro. Como Ulisses, os seres humanos precisam se acorrentar ao mastro de ouro se desejam evitar repetidos naufrágios monetários.Uma perspectiva final é a de que a crise deriva em última análise não da fragilidade financeira nem dos erros de bancos centrais, mas de distúrbios macroeconômicos graves na economia mundial. O maior deles seriam os imensos fluxos de capital excedente dos emergentes asiáticos (em especial a China), dos países exportadores de petróleo e alguns países de alta renda, seguido pelos superávits financeiros dos setores empresariais.Segundo essa visão, os BCs e, com eles, os mercados financeiros estavam só reagindo ao ambiente econômico mundial. O excedente de poupança não significava só baixas taxas de juros, mas necessidade de gerar nível elevado de demanda compensatória nos países importadores de capital, dos quais os EUA eram de longe o maior.De acordo com essa visão (com a qual concordo), o Fed só poderia ter evitado a adoção de políticas monetárias que agora parecem demasiadamente expansivas caso estivesse disposto a aceitar uma prolongada recessão e uma potencial contração econômica. Mas ele nem desejava nem tinha por missão permitir que isso acontecesse.O dilema do Fed, portanto, era o de que a única maneira de manter a demanda interna em nível suficientemente elevado para compensar os influxos de capital seria um boom de crédito. Isso causou preços exageradamente altos para os ativos, especialmente na habitação. O doloroso legado do período é a deflação de dívidas.Quando leio essas análises, sempre lembro da história em que quatro pessoas são convidadas a entrar em uma sala escura, segurar a primeira coisa que encontrarem e dizer de que se trata. Uma diz que é uma cobra. A segunda, um pedaço de couro. A terceira, um tronco de árvore. A quarta diz que segurou uma corda. O que havia de fato na sala era um elefante.A verdade é que uma história acurada dos fatos recentes envolveria diversos elementos. Os desequilíbrios macroeconômicos mundiais desempenharam papel importante nas decisões de política monetária. Que levaram a bolhas nos preços das moradias e a imensos excessos financeiros. Agora as autoridades precisam combater os sintomas da melhor maneira possível. Mas precisam enfrentar as causas subjacentes, se desejam evitar novas perturbações.


Artigo de Martin Wolf publicado no Financial Times e na Folha.
* fotografia de Ricardo Padue

As Confissões do Estrella


Não assisti, ainda, o filme "Meu nome não é Johnny sobre a vida de João Estrella que escreveu hoje um artigo na Folha.

Confissões
OI! POSSO me sentar? Desculpem-me, mas não pude deixar de ouvir a conversa... É que esse assunto muito me interessa. Como vocês sabem, negociei cocaína no Brasil e no exterior por seis anos, entre 1989 e 1995. Nesse período, consumi quantidades industriais de drogas -LSD, haxixe, cocaína, ecstasy, álcool, cigarros, cogumelos, maconha etc. Hoje, posso dizer com tranqüilidade que estou fora de tudo isso. Mas não foi fácil. Fui preso em 1995. Fiquei quatro meses na Polícia Federal da praça Mauá, no Rio de Janeiro, até sair o resultado do meu julgamento. Na sentença, a juíza me condenou a dois anos de internação em um manicômio judiciário no complexo Frei Caneca, também no Rio. As pessoas que lá nunca estiveram dizem que foi mole, que a sentença foi baixa etc. Mas não é assim. Basta olhar o nosso sistema prisional -há exemplos trágicos muito recentes- para entender que, no Brasil, nem mesmo um único dia na prisão é "mole". Aquela é uma realidade sobre a qual ninguém pode falar de fora. Fui condenado a quatro anos de prisão. Se fosse cumprir essa sentença, poderia sair em um ano e meio com bom comportamento. A juíza substituiu a pena para dois anos no manicômio. Lá, você tem que se recuperar, porque, se não tiver uma série de pareceres positivos, a sua pena é renovada tantas vezes quantas o juiz achar conveniente. São duas situações diferentes, na PF e no manicômio. Naquela, a vida com pessoas em constante crise de abstinência e com problemas de espaço e convivência. Neste, o convívio com pessoas que tinham graves problemas psicológicos e eram, em alguns casos, bastante violentas. Na primeira situação, em que não entravam drogas, as pancadarias eram constantes entre os presos e era quase impossível não se envolver. No manicômio, por sua vez, tive o "privilégio" de conviver na mesma cela com pessoas que haviam matado seus pais, assassinado o próprio filho com pauladas e até com psicopatas famosos, como um que matava crianças -foram 14- e comia seus órgãos depois que elas estavam mortas. Além da violência, algo que me impressionou foi que, pelo menos na época, o segredo de Justiça para quem fizesse denúncias -tipo delação premiada- não passava de promessa vazia. Na PF, fui colocado na cela de uma facção por (ainda bem!) não ter denunciado ninguém. Uma pessoa que tinha feito denúncias acabou sendo espancada -o depoimento do cara foi entregue na íntegra a mim e às pessoas que estavam na cela comigo. É, meu amigo, só quem não sabe nada da prisão é que pode dizer que minha sentença foi "mole". E só quem não sabe nada de criminalidade pode achar que apontar a classe média consumidora de drogas como responsável pela violência nos centros urbanos vai ajudar em alguma coisa. Sei que "Tropa de Elite" ajudou a levantar essa questão; mas, segundo consta, foi de forma não intencional. Será que alguém tem alguma dúvida de que os jovens não estão nem aí para essa culpa? Alguém tem a ilusão de que o consumidor de drogas possa estar preocupado se está ou não alimentando a violência? Eu negociei com muita gente de elite. É pura festa, meu amigo. Pura festa. Sabe, é fácil encontrar culpados, mas nós precisamos é de soluções. Se é para falar de culpa, bem, a sociedade como um todo tem responsabilidade por quem elege para administrar o dinheiro dos nossos impostos. Mas não é só neguinho da elite que não tá nem aí. O jovem pobre e criminoso também não está preocupado com isso -e tem lá os seus motivos. Ele faz parte de uma parcela da população que, além de ser massacrada pela miséria, ainda é esculachada pela polícia, enganada por políticos e jogada na marginalidade mesmo quando não é bandida, pois marginal é aquele que não participa da comunidade, aquele que é excluído. Esses cidadãos, que são os mais combatidos e que não têm direito a cela especial, são mais vítimas do que culpados. Sinceramente? A cocaína e o ecstasy são problemas, sim, mas não são os mais graves que temos neste país. Aliás, por falar em drogas, quer tomar um "drink"? Então... Temos o álcool, que, se não me engano, aparece em primeiro lugar na lista de destruição: homicídios, acidentes automobilísticos fatais, demolição familiar, violência doméstica... A cocaína aparece em quinto ou sexto lugar na lista de ocorrências com morte. Temos ainda a fome, a falta d'água, a falta de terra, a falta de vergonha na cara dessa corja que depena o país. A bem da verdade, quem dera nossos maiores problemas fossem os ecstasys que a rapaziada toma nas festas e que estão na mídia o tempo todo.
JOÃO GUILHERME ESTRELLA, 46, é cantor, compositor e produtor. Em sua história real foram baseados o livro e o filme "Meu Nome Não É Johnny".

terça-feira, 22 de janeiro de 2008


Li no Blog da Santa que dona Marisa Letícia vai ser agraciada com a medalha de honra ao mérito (que coisa mais antiga) do Santos Dumont que é concedida ao cidadão " que tenha prestado destacado serviços à Aeronáutica brasileira ou, por suas qualidades ou seu valor, em relação à Aeronáutica, forem julgados merecedores".


Que importantes serviços dona Marisa fez para a aeronáutica, além de ser frequentadora assídua do aerolula?


E eu adoraria ser o dono do buteco do aerolula.


Razão e Preconceito


Razão e preconceito


ENVIESADA e precipitada: é o mínimo que se deve dizer da nota de repúdio de uma centena de psicólogos, advogados, antropólogos e educadores contra estudo biológico sobre comportamento violento de 50 jovens infratores no Rio Grande do Sul. O projeto nem foi submetido a um comitê de ética em pesquisa, mas os signatários já lhe atribuem "velhas práticas de exclusão e de extermínio" e "retrógradas práticas eugenistas".O grupo da PUC-RS e da UFRGS planeja comparar jovens sob custódia do Estado que cometeram homicídios antes dos 18 anos com outros sem registro de violência. Entram na comparação histórico familiar e educacional, psicodiagnóstico, imagens do funcionamento do cérebro e variações genéticas, entre outros aspectos.O protocolo da pesquisa prevê obtenção de consentimento dos jovens estudados, de familiares e até do Poder Judiciário. Nada garante que identifique correlações significativas. Excluí-las de antemão, contudo, só ocorre a quem nega a priori que eventos cerebrais sejam relevantes para explicar o comportamento. A um determinismo biológico opõem outro, o do ambiente social.A censura é uma reação estereotipada à associação de biologia com comportamento. No século 19 e no início do 20, de fato, a suposição atabalhoada de uma relação causal entre características físicas (inclusive "raça") e capacidade mental, sem base real, produziu monstruosidades. Essa pseudociência foi demolida com argumentos teóricos e resultados empíricos, como convém. Não é o que se observa agora.Nas "Regras para a Direção do Espírito", Descartes alertava já em 1628 que prevenção e precipitação são as grandes fontes do erro. Ao estigmatizar o estudo com noções preconcebidas, os autores da nota advogam proibição incompatível com a busca do conhecimento.


Editorial da Folha de S. Paulo de hoje.
*Imagem, George Grosz, 1932, keep smiling.

Um Apelo à Razão


Bom o artigo, publicado na ZH de hoje, do professor doutor em economia, Alexandre Englert Barbosa, sobre aquela polêmica questão -- já referida neste blog -- da prova de história da UFRGS sobre a Alca e o neoliberalismo. Com razão o economista:"Quem elaborou a questão, errou. Quem "acertou" a resposta, errou. Quem errou a resposta, errou. Afinal, não há resposta correta para a questão."

Um apelo à razão
A pluralidade é uma marca registrada da UFRGS. Entre alunos e professores, o debate é freqüente. De lá saem diplomados que, depois de anos de estudo sobre um mesmo tema, divergem com veemência. A Alca é um desses temas polêmicos. Uma questão do vestibular 2008 da UFRGS, segundo seu gabarito, afirma que a Alca é uma política dos países centrais para manter os países periféricos nesta situação. A resposta está errada e a questão deveria ser anulada. Os motivos para tanto são vastos e, para explicá-los, seriam necessárias algumas dezenas de páginas. No entanto, como as literaturas nacional e internacional se encarregaram do "trabalho sujo" - leia-se científico - , cabe aqui apenas enumerá-los. Mesmo assim, antes de entrar nos argumentos técnicos, vale apelar para a razão.Como avaliar o teor de um "contrato" composto de páginas em branco? Acredite, a Alca nunca foi colocada no papel. As negociações "emperraram" em 2003 e, até então, não havia ocorrido um avanço para a fase de negociações. Adicionalmente, é preciso notar que a todos os 34 países pretendentes à Alca seria dada plena autonomia para decidir a entrada ou não no bloco.Adentrando na tecnicidade que o tema merece, cabe salientar que a Alca, enquanto acordo de livre-comércio, pretendia reduzir impostos na transação de produtos entre países do bloco. Ou seja, permitir a importação de, por exemplo, máquinas norte-americanas, mexicanas, panamenhas etc. sem imposto de importação por parte do Brasil, assim como esses países poderiam importar sapatos, aço, vinhos etc. do Brasil sem os mesmos impostos. A teoria econômica mostra que a diversidade aumenta o bem-estar. Afinal, quando entramos num supermercado e há vários produtos competindo por preços para conquistar o consumidor, ficamos mais "felizes". Extrapolando, podemos dizer que, para a população brasileira, ter uma oferta maior de produtos para comprar melhoraria nossas vidas.A crítica a este argumento só é obscurecida pelo propalado risco de perda dos empregos, com uma eventual "invasão de produtos norte-americanos". Aqui, vale apelar para teoria econômica mais uma vez. O desemprego de um país é essencialmente explicado por variáveis que passam ao largo do comércio internacional; tais como: escolaridade da população (capital humano), capacidade de investimento (acumulação de capital físico), tecnologia e qualidade das instituições ("regras do jogo").Mais ainda, são exatamente as assimetrias entre Brasil e EUA, assim como em relação aos demais países do continente, que tornam o acordo benéfico. Imagine dois vizinhos que abrem suas portas e passam a transacionar produtos (via escambo) sem barreiras, aos preços de mercado. Se ambos tiverem os mesmos produtos, a mesma renda e as mesmas preferências, de nada terá adiantado a intenção de trocar. Ou, diferentemente, imagine que um vizinho tenha condições precárias de sobrevivência, sendo menos abastado. O que ele poderá ter a nos oferecer? Em outras palavras, em tese, um acordo com os EUA deve ser superior para o Brasil a um acordo com o Gabão.A questão do vestibular, além de ser subjetiva e ideológica, trazia como certa a resposta sobre um acordo que ainda não foi realizado e, se tivesse sido colocado em prática poderia ser, inclusive, melhor para o Brasil. Como se não bastasse, incluiu o termo neoliberal como resposta correta, em outra lacuna a ser preenchida, algo que sequer é bem definido, exceto nas cabeças daqueles que se declaram contrários a essa "vertente" semi-amorfa. Quem elaborou a questão, errou. Quem "acertou" a resposta, errou. Quem errou a resposta, errou. Afinal, não há resposta correta para a questão.


* foto: Colonne Dynamo”, 1935, de Alexander Rodchenko

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008


As Sociedades Modernas são Menos Exploradoras Que as Antigas



Para o economista do Banco Mundial Branko Milanovic, autor principal do estudo comparando desigualdade entre sociedades antigas e modernas, os resultados de seu trabalho não devem ser tratados como uma medida precisa e irrefutável da desigualdade em economias pré-industriais. Para ele, porém, os dados podem ser interpretados como indicativos de que, apesar de os índices de desigualdade do passado e do presente serem muitos parecidos, havia, ontem e hoje, sociedades mais e menos desiguais. Leia a entrevista que concedeu ao Mais! (AG)

FOLHA - O fato de os níveis de desigualdade em sociedades modernas ou pré-industriais serem parecidos não mostra que se trata de uma característica natural de qualquer sociedade? BRANKO MILANOVIC - É uma conclusão errada por duas razões. Primeiro, se é verdade que, na média, a diferença nos índices de Gini das sociedades antigas e modernas é pequena, também é verdade que há muita variação entre países. Hoje, há nações mais igualitárias com Gini próximo de 20 [na escala de zero a cem], como Finlândia, Suécia ou Holanda, e outras com níveis muito mais altos, próximos de 60, como Brasil e África do Sul. O mesmo acontecia nas sociedades antigas. Olhar apenas para as médias, portanto, seria enganoso. Segundo, mesmo que duas sociedades -uma antiga e outra moderna- possuam o mesmo Gini, seu significado é bem diferente. Isso está expresso em nosso trabalho no cálculo da taxa de extração de desigualdade. Em sociedades antigas, em que a renda média é baixa, uma alta iniqüidade só era possível quando uma elite pequena se apropriava de quase todo o excedente da riqueza, deixando mais de 90% da população com um mínimo apenas para subsistência. As sociedades modernas, no entanto, são muito mais ricas e, por isso, podem manter o mesmo nível de desigualdade sem extrair tanto desse excedente. O que mostramos em nosso trabalho é que as sociedades modernas são, em média, muito menos exploradoras em comparação com as antigas.
FOLHA - Comparações de desigualdade entre países hoje já são feitas com cautela e ressalvas. Não seria ainda mais duvidoso fazer isso entre sociedades antigas e modernas? MILANOVIC - Sem dúvida, é um grande problema. Nossos números são mais sugestivos, uma tentativa, e refletem muito mais tendências gerais do que dados precisos e acurados. Talvez à medida que mais informações fiquem acessíveis -e estamos hoje testemunhando um grande incremento na pesquisa da história econômica- possamos confirmar ou rejeitar estimativas para as sociedades antigas. No entanto, acreditamos que a abordagem que adotamos para as sociedades antigas, usando a classificação dos grupos sociais de acordo com suas rendas médias, é relativamente robusta e provavelmente a única factível.
FOLHA - Países mais ricos são menos desiguais. Não é uma evidência de que a desigualdade trava o crescimento econômico? MILANOVIC - Essa correlação pode ser verdadeira, mas sua causalidade é mais difícil de ser comprovada.Esses países são ricos porque foram mais igualitários em sua origem ou porque sua desigualdade foi caindo à medida que enriqueciam? Provavelmente as duas hipóteses são verdadeiras e é por isso que é tão difícil estabelecer a relação de causa e efeito. Além disso, a mudança no padrão de desigualdade não é um produto apenas da realidade econômica, mas de várias outras forças: sociais, históricas, culturais.

De qualquer jeito, há muitos exemplos de países que conseguiram reduzir sua desigualdade ao mesmo tempo em que cresceram.


Sobre este mesmo assunto, DNA da Diferença, também no Caderno Mais
*Foto de Suzana Sá.

40 anos de Maio de 1968


Sexo e Revolução


Em 2008 acontecerá o 40º aniversário de um momento crucial do século 20. Muitos estopins pegaram fogo ao mesmo tempo, e uma geração se rebelou contra a sociedade burguesa. "Desejar a realidade é bom; realizar os desejos é melhor." A revolução de 1968 recendia a orgia. Assim, não se pode considerar estranho que seus detratores a vissem como um ataque de raiva de jovens mimados. E obscenos. O clima dionisíaco de 1968 foi o núcleo da revolta. Todas as críticas feitas aos fogos de artifício políticos daquele ano deixam de levar em conta sua fogueira fundamental, acesa pelo sexo e graças ao movimento de liberação da mulher. O capitalismo, porém, se manteve em pé. Trocou sua pele antiga por um cetim das cores do arco-íris, e ganhou a capacidade de desenvolver-se como grande festa pública de consumo agregada à do orgasmo e do antiautoritarismo. O capitalismo de produção e repressor rumou em direção ao cromatismo musical do capitalismo de consumo. O crescente valor do jovem significou uma inversão na hierarquia de valores. O protótipo burguês baseava sua moral em virtudes capitais: o poupar, a utilidade e a finalidade. Maio de 68 refutava cada um desses princípios. Diante do poupar e da contenção sexual, propugnava o gasto orgástico; diante da renúncia, o prazer já. A revolução "agora!" foi o grito fundamental que hoje se refere a qualquer coisa, desde o eletrodoméstico até a casa, da viagem ao fast food. A economia revelou-se equivalente à repressão, e a utilidade ou finalidade se manifestaram como a marca desencantada do projeto e da ação. Diante do poupar repressivo, o gasto; da utilidade calculada, o imediatismo e, da finalidade, a aventura. Esses elementos fazem o triângulo da cultura de consumo. Se os protagonistas de 68 conclamavam à criatividade, ao prazer, à liberação generalizada, também apelavam contra a sociedade de consumo, que, paradoxalmente, tornou-se a mais criativa e a que mais correspondeu a seus anseios de pecado sem penitência. O paradoxo era este: seus líderes repudiavam o consumismo sendo grandes consumistas por excelência: do tempo, do sexo, dos direitos, dos meios de comunicação. De fato, tanto Maio de 68 quanto o sistema geral de consumo são inconcebíveis sem a gigantesca explosão da "mass media". Veio daí o fato de a revolta ser, por um lado, muito ampla, como uma endemia, e, por outro, muito efêmera. Nascida e desenvolvida como um acontecimento sensacionalista num jornal da imprensa marrom, por mais vermelha pudesse parecer. Hoje não vale a pena qualificar aquela subversão como êxito ou fracasso -suas reivindicações se inscreveram na alma social como um bordado do mesmo fio. E o fizeram com tanta naturalidade quanto um ritmo que se encaixa perfeitamente com a melodia tocada em todo o mundo desde então: a melodia do novo capitalismo de consumo. A moda ingressou no sistema como aspecto do ritmo dominante. Antes, ela era quase exclusivamente de mulheres. Depois, se fez espetáculo total. Contudo, o feminino foi importante, permeando o juvenil e o subversivo como um aspecto essencial do momento. Sem a mulher não teria sido possível a festa, e foi graças a seu vigoroso movimento de liberação que se emanciparam dois ou três sexos ao mesmo tempo. O dela, que funcionava como grande polícia dos bons costumes, o masculino, que ganhou a inesperada liberdade de intercambiar seus desejos com os de seus pares. Muitas ou todas as comunas fracassaram, e quase todas as tentativas de "ménages à trois" provocaram neuroses; mas tanto Truffaut quanto nós não desperdiçamos a oportunidade de experimentar. As contradições do Maio de 68 são tantas que tornam sua lembrança mais brilhante. De cada contradição brotou uma faísca, e, de todas, uma luz que, se fracassou em seus objetivos políticos, triunfou na liberação de suas intuições e emoções substanciais. Foi, sem dúvida, uma grande vitória da feminilidade.


Artigo de Vicente Verdú - Publicado no Caderno Mais da Folha ontem.