Diversidade, Liberdade e Inclusão Social

Foto: Obama, Cameron e Helle Thorning-Schmidt


quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Uma Certa e Perigosa "Fraternidade de Sangue"



Artigo de Demétrio Magnoli, na Folha de hoje sobre a complicada política de cotas raciais. Tem uma frase nesse texto que vou colocar num poster aqui no Blog: "...a honestidade intelectual é um artigo escasso numa esquerda que não entendeu o significado da queda do Muro de Berlim e continua a hostilizar os princípios sobre os quais se sustenta a democracia."
Eis abaixo um dos melhores textos sobre políticas de cotas raciais.
O dom de iludir

No vestibular da UnB (Universidade de Brasília), um hipotético filho do ministro Joaquim Barbosa, do STF, com renda familiar de várias dezenas de salários mínimos, que estudou nos melhores colégios particulares, optante do sistema de cotas raciais, precisaria de menos pontos para ser aprovado que um estudante de escola pública de pele clara, filho de trabalhadores, com renda familiar de três salários mínimos. Como sustentar a constitucionalidade e a justiça disso?

W. E. B. Du Bois, o intelectual americano que fundou o pan-africanismo no início do século 20, interpretava a história como um drama cujos protagonistas eram as raças. Num ensaio que está na origem remota das atuais políticas racialistas, ele formulou a tese de que a raça negra seria salva pela sua elite intelectual: "os talentosos 10%", na expressão escolhida como título do ensaio. Eis aí a única forma intelectualmente honesta de justificar o sistema de cotas raciais na UnB.


Mas a honestidade intelectual é um artigo escasso numa esquerda que não entendeu o significado da queda do Muro de Berlim e continua a hostilizar os princípios sobre os quais se sustenta a democracia.


O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, um dos arautos proverbiais dessa esquerda, invocou a "justiça social" e a "justiça histórica" como argumentos de legitimação do sistema de cotas ("Tendências/Debates", 26/8). É uma opção pelo ilusionismo, que investe na confusão conceitual para ocultar o sentido das políticas de raça.


De acordo com a proposição implícita de Sousa Santos, o hipotético filho de Barbosa figura como representação da massa de pobres pardos e pretos vitimados por uma abolição sem reformas sociais e uma modernização econômica excludente. Sobre essa fundação imaginária, ele apresenta as cotas raciais da UnB como um modelo de ferramenta para o "fim do colonialismo social" no Brasil.


Falta, porém, combinar a justificativa histórica com o antropólogo José Jorge de Carvalho, "pai fundador" do sistema de cotas naquela universidade, que o explicou de um modo singelo: "Aí não há nenhuma discussão do capital, nenhuma proposta socialista, nenhuma proposta renovadora da ordem do capital; todo mundo pode acumular riqueza. Mas, digamos assim, celebra a diversidade. Seja como for, pelo menos alguns passaram a ser bilionários: índios bilionários, latinos bilionários, negros bilionários".

Carvalho é um racialista legítimo, da linhagem de Du Bois. Pretende fazer da universidade um dínamo de geração de elites raciais -e reconhece isso. Sousa Santos é um intelectual da "nova esquerda". Usa seu dom de iludir para vestir a política de raça com a fantasia de um programa de redenção social. E finge desconhecer os inúmeros estudos empíricos que comprovaram, em diferentes países, que os sistemas de preferências raciais beneficiam unicamente a diminuta camada superior do grupo social definido como uma raça.


Relatando a ação de inconstitucionalidade movida pelo DEM contra o sistema de cotas da UnB, o presidente do STF, Gilmar Mendes, sugeriu que a corte reflita sobre o conceito de fraternidade. Sousa Santos enxergou na sugestão uma "inovação importante no discurso do Supremo" e sustentou a ideia de que o programa de preferências raciais institucionaliza uma "fraternidade efetiva". O adjetivo do sociólogo nada significa, funcionando só como um recurso retórico destinado a circundar o dilema de fundo.

A fraternidade invocada por Gilmar Mendes é a da Revolução Francesa. Antes de 1789, a nação era apenas a aristocracia, entrelaçada por vínculos de sangue e de privilégio que formavam um tipo de fraternidade. Depois da derrubada da Bastilha, a nação foi redefinida como o povo inteiro, unido por um contrato político.

A nova fraternidade proclamada fundou-se na ausência de distinções essenciais entre os indivíduos: a "irmandade dos cidadãos". Eis o motivo pelo qual, no tríptico dos revolucionários, a fraternidade não figurava sozinha, adquirindo significado na companhia da liberdade e da igualdade.

Políticas de preferências raciais podem ser justificadas pelo conceito de fraternidade, mas com a condição de que ele seja traduzido nos termos do "Ancien Régime". A raça é uma fraternidade de sangue: uma irmandade inventada a partir de descendências imaginárias.

Dividir o Brasil em raças oficiais, o pressuposto dos sistemas de cotas raciais, equivale a optar por esse tipo de fraternidade, em detrimento da "irmandade dos cidadãos". É curioso, e um tanto trágico, que se tente sustentar tal programa com um discurso de esquerda. Mas é um sinal dos tempos...
DEMÉTRIO MAGNOLI , sociólogo, é autor de "Uma Gota de Sangue - História do Pensamento Racial" (São Paulo, Contexto, 2009).

5 comentários:

charlie disse...

Como o Janer costuma escrever, luta de classes morta, luta de raças posta. A esquerda nunca vai desistir de tentar trucidar conceitos como cidadania, liberdade e individualismo.

senna madureira disse...

Charlie

Tudo isso poderia ser diferente.

O sistema de cotas é justo em função da desigualdade social do país.

Mas fazem um estardalhaço tremendo contra.

O negro deveria ter melhor oportunidade.

O pior é que a Universidade pública é uma porcaria também.

O Demétrio força a barra.

Gosto dele, mas é um demagogo.

Carlos Eduardo da Maia disse...

Concordo, Senna, que o negro deveria -- e deve -- ter mais oportunidades. Aliás, não apenas os negros, mas todos que são excluídos, inclusive milhões de brancos. E por isso sou a favor exclusivamente das cotas sociais. Alimentar antagonismos raciais no Brasil de nossos dias é uma imensa estupidez... Com todo o respeito, of course!

charlie disse...

Uma das defesas dessas políticas raciais que mais me chamam a atenção é a da "dívida histórica". Eu, branco (ou pelo menos com um tom de pele mais claro do que um africano subsaariano), tenho que pagar por crimes que, talvez, meus ancestrais brancos tenham cometido contra indivíduos da raça negra. Mais ou menos como o pecado original dos cristãos. O problema é que não sou cristão. Nem religioso. Além do mais, nosso país é mestiço.

Somos brasileiros, e isso independe de cor de pele. E eu não aceito ser julgado, nem priviligiado nem prejudicado em função disso. Já ouvi em gente defender até "carteirinha para negros", ou fazer constar no doc de identidade a raça. É ridículo.

charlie disse...

E amigo Senna, desigualdade social não se resolve com lei racial.