Além da culpa pelos crimes de seus pais, a nova geração de sul-africanos de origem europeia se vê diante de uma nova ameaça – a pobreza
Copio e colo do Blog "Contra a Racialização do Brasil" sobre matéria publicada na revista Época.
Como Ser Jovem e Branco na Africa do Sul
André Fontenelle, de Johannesburgo. Revista Época
O dia 16 de junho é feriado nacional na África do Sul – o Dia da Juventude, em memória de um menino de 12 anos morto pela polícia do apartheid. Foi em 16 de junho de 1976 que o township de Soweto se levantou contra o ensino obrigatório do africânder, a língua dos brancos. A imagem do menino Hector Pieterson, baleado, nos braços de um colega, despertou a opinião pública mundial para as atrocidades do regime segregacionista. A foto decora o memorial a Pieterson, no local onde ele tombou. Todos os anos, nesse dia, uma cerimônia pública é realizada ali em sua homenagem.
Na quarta-feira, no mesmo instante em que milhares de pessoas assistiam a essa cerimônia, a 40 quilômetros dali um grupo de 50 jovens, repartidos quase meio a meio em brancos e negros, debatia o futuro da África do Sul. Membros de partidos políticos, ONGs e entidades de direitos civis, a maioria na casa dos 20 anos, eles têm pouca ou nenhuma lembrança dos tempos do apartheid – mas suas vidas continuam a ser moldadas diariamente pelo passado que não testemunharam.
“Quem entrou na escola depois de 1994 não deveria estar sujeito à ação afirmativa”, disse um jovem branco, referindo-se à política de cotas implantada depois do apartheid para reduzir a desigualdade entre brancos e negros. “Em um concurso para 50 vagas de piloto de helicóptero na polícia, havia 150 candidatos brancos. Nenhum foi aprovado”, queixou-se outro branco. “Vocês se recusam a nos devolver nossas terras porque dizem que não sabemos cultivá-las”, retrucou um negro. Um debatedor branco decidiu se exprimir em africânder, e não em inglês. “Esse comportamento de perguntar em africânder é intolerável!”, protestou um negro. “É meu direito falar em minha língua”, respondeu outro branco, tomando as dores do colega.
Basta assistir meia hora a semelhante debate para ter uma ideia do abismo que separa os sul-africanos pela cor da pele. O fim relativamente pacífico do apartheid deixou sem solução uma série de questões que caberá à nova geração resolver. Para os negros, o controle da economia continua injustamente na mão dos brancos; estes, por sua vez, se sentem cidadãos de segunda classe num país em que todas as leis parecem favorecer o antigo oprimido.
A minoria caucasiana enfrenta até um problema inédito – a pobreza. “Dos 4 milhões de brancos da África do Sul, 750 mil vivem com menos de 4 mil rands (cerca de R$ 940) por mês”, diz Tiaan Esterhuizen, de 25 anos, dirigente da Helpende Hand, organização dedicada a combater a “pobreza branca”. “Os brancos pobres estão entregues à própria sorte, porque não têm direito à ajuda do governo”, afirma Ernst Roets, advogado de 24 anos e líder do AfriForum, entidade de direitos civis que luta pelos direitos das minorias. Segundo Roets, há 70 favelas de brancos nos arredores de Pretória: “Se alguém fala que é preciso ajudar os brancos, é acusado de racismo”. A nova geração de brancos defende o fim, ou pelo menos a flexibilização, do conjunto de leis que concede aos negros a prioridade no recrutamento das empresas.
É mesmo difícil falar em pobreza branca num país onde a regra ainda é a pobreza negra. Mais de 40% dos sul-africanos vivem com menos de R$ 100 por mês. “Muitos jovens africanos (isto é, negros) ainda veem os brancos como um grupo privilegiado”, diz Leaga Lesufi, de 29 anos, dirigente do Congresso da Juventude Pan-Africanista de Azania, tradicional entidade negra. Uma das principais queixas é relativa à distribuição das terras. “Os brancos detêm quase 85% das terras”, afirma Lesufi. “Em algum momento eles terão de ceder esse controle.” Para reforçar seu argumento, Lesufi ergue a mão direita espalmada e grita: “Izwe lethu!” (“A terra é nossa!”, na tradução do zulu). Ao que os negros a sua volta respondem, como de costume: “I Afrika!” (“África!”).
São diferenças que parecem irreconciliáveis – mas a disposição dos jovens para o debate mostra que existe esperança. Na quarta-feira, John Mabaso, funcionário de uma empresa de transportes, levou a filha, Ayanda, de 3 anos, para conhecer o memorial a Hector Pieterson. “Ela vai aprender sobre isso na escola e eu prometi trazê-la”, diz Mabaso. “A África do Sul tem boas chances de se unir, se as diferentes nações dentro dela se entenderem. Este é um grande, grande país.”
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