Diversidade, Liberdade e Inclusão Social

Foto: Obama, Cameron e Helle Thorning-Schmidt


sábado, 19 de junho de 2010

Gauchadas



Nós, os reacionários, por Marcelo Rocha*

Resultado de uma colonização tardia e de uma posição geográfica periférica, o Rio Grande do Sul sempre cultivou um olhar de desconfiança em relação à competição externa, tanto no que se refere ao capital de investimento econômico quanto ao capital simbólico e cultural. Da mesma forma, um tema que gera sempre uma aguerrida discussão em nosso Estado diz respeito à identidade regional, que, sabemos, não é uma questão tão fácil de ser resolvida.

Quando se fala em identidade, parece, em um primeiro momento, que estamos reforçando uma positividade, ou seja, dizer que somos gaúchos implica uma espécie de autorreferência. Assim, temos a ideia de que a identidade toma a si própria como centro, isto é, sou aquilo que sou. No entanto, esta discussão vai um pouco mais além.

Ao dizer que somos gaúchos, esse ato performativo de linguagem esconde uma cadeia extensa de negações. Não por acaso, as torcidas do Grêmio e do Internacional, quando em vitórias importantes de seus times e, especialmente fora do Estado, fazem questão de entoar em alto e bom som: “Ah, eu sou gaúcho!”. Desta forma, ser gaúcho significa, principalmente, não ser baiano, carioca ou paulista. Aquilo que somos passa então a representar um produto de contrastes. Em suma, identidade e diferença formam, assim, uma relação de estreita dependência.

Talvez um dos grandes problemas da imagem do gaúcho tem sido sua representação, configurada em um longo percurso histórico, desde o século 16. O tipo social do gaúcho, herdeiro dos sujeitos que habitavam as proximidades do Rio da Prata, surge a partir da necessidade de caça aos rebanhos selvagens, na busca pelo couro para subsistência. Errante, o gaúcho sofre diretamente com a transformação gerada pela Coroa portuguesa com o nascimento dos latifúndios, tendo que optar entre a inserção na ordem capitalista, na condição de peão, ou buscar uma alternativa a esta estrutura produtiva vigente. Daí, também, a construção simbólica do gaúcho como misantropo e solitário.

Essa relação entre identidade, representação e História é importante para ser entendida como pano de fundo da declaração do ex-jogador Sócrates de que os gaúchos seriam “os brasileiros mais reacionários do Brasil”. Ora, em primeiro lugar, a pergunta que se deve fazer é: quem são os gaúchos? Como vimos, a identidade não pode ser vista como uma essência, um dado, um fato ou como algo unificado e permanente. Ela possui uma relação com História, com a sociedade e, sobretudo, com a diferença. O mesmo Sócrates admite que os gaúchos são também brasileiros. É evidente que somos.

Em segundo lugar, não é demasiado dizer que o gaúcho, como habitante de uma região de fronteira, representa-se e é representado sob uma identidade híbrida. Contudo, o híbrido aqui não se constitui como mistura ou conciliação de diferentes pontos de vista, mas justamente no conflito com discursos autoritários e hegemônicos. Nesse sentido, portanto, talvez esteja presente um dos traços da peculiaridade de nosso povo. O gaúcho (híbrido) assemelha-se ao brasileiro (e torcemos, sim, pela Seleção, por exemplo) ao mesmo tempo em que resistimos à ideia de incorporação absoluta ao Brasil. Mas o que o Dr. Sócrates, por fim, talvez não entenda é que não somos conservadores nem queremos retroceder na História, mas preservar a nossa diferença, diante de um discurso que, muitas vezes, tenta nos descaracterizar e nos inferiorizar.

*Professor da Unipampa de São Borja - artigo publicado na ZH de hoje.

Nenhum comentário: