A nova política
José Arthur Giannotti
Caderno Mais! da Folha de Ontem
Para entender a crise atual do sistema capitalista de produção convém insistir no seu caráter automático. A crise se aninha na natureza da ação socioeconômica que repõe o capital.
Os agentes operam no mercado imaginando que suas ações sempre serão contrabalançadas por ações alheias, atuam graças à mediação do dinheiro que, por si mesmo, aparece como se tivesse a virtude de transformar mercadoria em preço e preço em comprador.
Dada essa equação, a economia cresceria indefinidamente. A crise revela a perversidade desse processo e recoloca a questão do Estado nesse movimento de reposição.
Mas qual Estado?
Se deixarmos de lado esse automatismo, simplesmente iremos procurar agentes responsáveis pela crise, como se todos eles não tivessem culpa no cartório.
O desafio não é encontrar novos mecanismos de mercado, mais sadios e consistentes, mas instituir órgãos reguladores do funcionamento dos vários mercados capazes de legitimar seu funcionamento, isto é, assegurar que funcionem em vista do bem-estar e do bem-ser da população.
Ilusão em xeque
A crise revela o caráter social do capital e indica como ele precisa ser reestruturado de um ponto de vista político.
Mas política radical. Em que sentido? Está posta em xeque a ilusão de que a luta política deva recorrer a um fundamento comum consensual, como se o ser humano fosse naturalmente social e atuasse a partir dessa sociabilidade primeira.
Basta um olhar crítico sobre a política internacional contemporânea para que se perceba que os conflitos, por serem tão radicais, podem ser identificados com um confronto de civilizações. Não é assim que vejo, pois as populações querem participar de uma forma de vida pós-industrial.
Assim sendo, o consenso, a legitimidade das decisões, passa a ser construído e resulta do esforço de cada parte em vista de manter a si mesma segundo o que pretende ser, mas reconhecendo a possibilidade de persuadir e de ser persuadida.
Hoje a legitimidade se faz construindo instituições legitimadoras.
Neste início de maio se realizou em Grenoble [França] um fórum reunindo mais de cem pesquisadores para discutir a democracia em nível mundial.
Foi organizado por Pierre Rosanvallon, que acaba de publicar "La Légitimité Démocratique" [A Legitimidade Democrática], um excelente livro, e conta com a participação importante de Claude Lefort.
Todos sublinhando que a democracia é sistema aberto, sempre se reinventando, mas que, nos dias de hoje, somente se torna legítima na medida em que se associa a instituições capazes de se tornarem imparciais diante de conflitos, refletir sobre seus efeitos e não perder contato com as várias populações interessadas. É preciso ir além do bom funcionamento dos procedimentos eleitorais, reconhecer o caráter global das políticas econômicas e a necessidade de políticas sociais compensatórias.
Crise evidente
Note-se que não são apenas os franceses que estão colocando essas questões -elas se impõem na Alemanha, na Inglaterra, nos EUA. Enquanto eles discutem os desafios de uma democracia pós-eleitoral, assistimos à perda de legitimidade de nosso processo eleitoral, enfim, do sistema de representação. Nosso Estado cresce sem que seja nem mesmo posta a questão do caráter democrático de suas decisões.
A crise no Legislativo é mais evidente.
Quando seus membros se confessam imorais, quando arrombam os cofres públicos, quando propõem novas regulamentações que não passam de máscaras para manter antigos privilégios, estão simplesmente evidenciando e velando a crise sistêmica no processo de representação e de legitimação.
Não é de hoje que saliento a necessidade de pensar a moralidade pública no contexto de inventar novos parâmetros, por conseguinte, de quebrar até mesmo antigas regras morais para que novas se estabeleçam.
Nunca imaginei, entretanto, que políticos viessem confessar sem pejo que pouco lhes importa o lado moral de suas ações, visto que, mesmo se mostrando sem caráter, continuam a receber o voto popular. Há melhor prova da ilegitimidade do sistema? Nessa mistura entre o público e o privado, não é o caráter democrático da instituição que está sendo posto em xeque? O popular nem sempre é democrático, isso já sabemos por experiência própria.
Se não há preocupação com a democracia interna, menos ainda se pensa nas dificuldades de estabelecer um sistema democrático controlando os mercados. Já que nos contentaremos com um Estado grande (ou inchado?), importa-nos apenas o controle externo que permita nosso crescimento.
Por aqui o importante é fazer de conta que se é eficaz, seja lá em qual domínio. Onde estão, porém, as transformações das burocracias do Estado que tragam para o mundo essa ideologia da eficácia?
Diante das pressões da mídia e da insatisfação popular, o Legislativo requenta propostas de reforma política. Mas não vejo em nenhuma delas uma preocupação de aprofundar a democracia, de melhorar o sistema representativo a partir dos obstáculos e dos erros do jogo de poder atual.
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JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito da USP e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve na seção "Autores", do Mais!.
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