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segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Um dia na morte de Soljenitsin




Um dia na Morte de Soljenitsin

Angelo Segrillo




Escrevo este texto no dia seguinte à morte de Alexander Soljenitsin. De ontem para hoje fiquei impressionado com a pouca reverberação do fato.Logo após a notícia da morte, liguei a TV na CNN esperando ver algum daqueles quadros de "breaking news", mas o noticiário esportivo da Olimpíada prosseguiu sem cortes, com apenas uma menção, relativamente breve, bem depois. Alguns jornais no dia seguinte noticiaram o fato sem destaque. Soljenitsin merecia mais.Sua morte já havia começado antes. Sua influência declinara com o fim da União Soviética (URSS). O Ocidente parecia não necessitar dele como a "consciência da Rússia", e, sim, apenas como a "consciência da União Soviética". Isso proveio de suas posições políticas e ideológicas.Soljenitsin era anticomunista, mas não liberal. Criticava tanto o comunismo ateu como o liberalismo ocidental, permissivo e moralmente corrupto, segundo ele. Pregava uma volta da Rússia às suas raízes tradicionais e ortodoxas.Essa não é a receita para manter a popularidade no Ocidente atualmente.E nem necessariamente na Rússia. A identidade desse país (que é o maior do mundo e também, ao mesmo tempo, o maior da Ásia e o maior da Europa) é um assunto que divide a elite intelectual russa em várias correntes.Os ocidentalistas consideram o país europeu e que, portanto, deve seguir o caminho ocidental. Os eslavófilos dizem que não é nem europeu nem asiático, e sim uma civilização única e que, portanto, deve seguir uma trilha própria. Os eurasianistas enfatizam o caráter eurasiano do país.Putin segue um caminho que tem agradado a muitos eslavófilos e eurasianistas depois da época do ocidentalista Ieltsin.Soljenitsin deveria, assim, se inserir bem nesse novo contexto. Mas Putin é um ex-agente do KGB: não quer renegar o período da URSS, e sim incorporá-lo numa visão russa global de séculos. E, com a URSS, Soljenitsin nada queria.Mas a política nos faz esquecer o lado principal de sua atividade e pelo qual merecia maior atenção: ele era um excelente escritor.Desde o estilo direto ("hemingwayiano") de "Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch" [ed. Siciliano] até o denso e elaborado ("dostoievskiano") de obras como "O Primeiro Círculo" e "O Pavilhão dos Cancerosos", Soljenitsin se mostrou à altura da tradição russa dos grandes escritores.Aliás, é interessante notar a analogia com Dostoiévski no seu despertar como autor.Os dois passaram por profundas transformações espirituais e ideológicas em seus períodos de exílio interno no país, do qual emergiram como escritores com a missão auto-atribuída de resgatar a Rússia.Lendo-se páginas de certas obras dos dois, não se pode deixar de notar traços comuns no pátos de suas narrativas.Alguns dizem que Soljenitsin era a "consciência da Rússia".Isso é algo controverso, pois nem todos no país concordavam com suas idéias. Basta ver a relativa obscuridade em que se encontrava após sua volta à Rússia, nos anos 90, ou o caráter polêmico de suas fórmulas para a reconstrução da nação.Retidão moralEntretanto, mais do que a consciência na Rússia, Soljenitsin foi um homem que manteve a coragem de suas convicções no mundo.Não temendo remar contra a maré, enfrentou o sistema soviético, que considerava repressivo. Em seu exílio nos EUA, quando se esperava que se tornasse o "darling" da propaganda pró-Ocidente, atacou o que via como complacência do liberalismo ocidental.De volta à Rússia, criticou a decadência dos valores russos sob o novo regime de Ieltsin.Longe de ser uma metamorfose ambulante, manteve-se firme na oposição aos regimes pelos quais passou.Intelectualmente pode-se criticar o seu conservadorismo, mas moralmente há que reconhecer que se manteve firme e não se curvou a nenhum poder.O maior reconhecimento mútuo que teve com Putin nos últimos tempos se deveu a uma certa afinidade em suas concepções comuns do lugar da Rússia no mundo, e não a uma aproximação com o poder.Simbolicamente foi uma justa tranqüilidade final para que o lutador repousasse em seu leito de morte.


ANGELO SEGRILLO é historiador da USP, da Universidade Federal Fluminense e do Instituto Púchkin de Moscou. Escreveu "O Fim da URSS e a Nova Rússia" (Vozes).

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