Vira-latas Compensatórios
RENATO MEZAN
O erro que custou a Diego Hypólito uma medalha tida por todos como certa reativou um fantasma recorrente: a crença na vocação do brasileiro para fracassar nos momentos decisivos. Por alguma característica da alma nacional, não seríamos capazes de suportar tal pressão, o que se evidenciaria com particular clareza nas finais esportivas em que somos considerados favoritos.
Daí a expectativa que cercava as "meninas do vôlei": por terem perdido algumas partidas finais, elas haviam sido tachadas de "amarelonas", "pipoqueiras" e outras gentilezas do mesmo teor.Daí também a atitude condescendente para com as futebolistas que, repetindo Atenas, "deixaram escapar o ouro" e os muxoxos com que foram recebidas as medalhas de prata e bronze em outras modalidades."Não temos vocação para perder", exclamou Ronaldinho após a derrota para a Argentina. "Bronze envergonhado", dizia a manchete de "O Estado de S. Paulo" no dia seguinte.Por que tamanha tolice ressurge periodicamente "nos lares e nos bares", na televisão e na imprensa? Eu mesmo recebi telefonemas de jornalistas interessados em ouvir o que um psicanalista teria a dizer sobre a insidiosa inibição supostamente responsável pelo "fracasso do Brasil na Olimpíada", como formulou um deles.O fato de a pergunta ser descabida -é óbvio que não existe nada disso- não nos exime de investigar por quais motivos ela pode parecer legítima.É certo que Freud, num pequeno artigo de 1916 intitulado "Vários Tipos de Caráter Descobertos no Trabalho Psicanalítico", falou dos que "fracassam ao triunfar", e atribuiu o fenômeno aos sentimentos de culpa associados ao complexo de Édipo: colher um êxito ardentemente desejado é para certas pessoas equivalente a uma agressão contra o pai ou a mãe -e a consciência moral, opondo-se energicamente a isso, interfere para as impedir de atingir o alvo.Mas nada sugere que tal seja o caso das jogadoras de futebol, dos competidores em vôlei de praia e dos demais atletas -brasileiros e de outras nacionalidades- que conquistaram medalhas de prata e de bronze, para não falar dos que não conseguiram subir ao pódio.É a obsessão nacional pelo "ouro", e a atitude frente à vitória ou à derrota que nela transparece, que merecem um pouco de reflexão.Auto-engano "Não estamos acostumados a perder", exclamou um desconsolado Ronaldinho após a derrota para os argentinos. "Não pensamos em prata: nosso objetivo é o ouro. Mas ainda não ganhamos nada", ecoou Marta ao terminar a semifinal contra as alemãs.Frases como essas sugerem que muitos atletas compartilham a convicção de que é possível ganhar sempre, que o segundo lugar é apenas um "prêmio de consolação" e que o bronze não tem valor nenhum.O que neles era latente se torna explícito na postura do presidente da Confederação Brasileira de Futebol, Ricardo Teixeira -não haveria prêmios monetários caso as seleções de futebol voltassem sem os respectivos títulos, o que acabou acontecendo.Querendo isentar-se da responsabilidade pelas condições precárias em que boa parte dos esportistas teve de se preparar, outros dirigentes recorreram à surrada fórmula do "bronze que vale ouro", versão cabocla do "jogo do contente" inventado por Poliana.Se a platéia não as aceitasse, porém, ninguém se lembraria de invocar tais desculpas esfarrapadas, e é a cumplicidade dela na operação de mascaramento da realidade que chama a atenção.Uma das razões dessa atitude é sem dúvida de natureza projetiva: os esportistas carregam nos ombros a responsabilidade de "representar a nação".Vencendo, inflam nossa auto-estima e, fazendo-nos crer que somos tão bons quanto os melhores, nos proporcionam uma satisfação narcísica rala, mas de certo modo eficaz; se perderem, confirmam a crença na pouca valia dos nossos conterrâneos e, portanto, de nós mesmos.O segundo motivo para desprezar os "perdedores" é a inveja, pois jamais chegaremos a realizar nada parecido com as proezas de que são capazes esses jovens. Como a inveja não é um sentimento nobre, negamo-la atribuindo o "fracasso" não às circunstâncias específicas que o provocaram, mas a algo cuja função é nos tornar mais uma vez semelhantes aos que, no fundo, não podemos deixar de admirar -mas agora pelo avesso: se a incapacidade de transformar o favoritismo em realizações é uma trágica fatalidade do caráter brasileiro, então os atletas não podiam mesmo conquistar a almejada vitória.A inveja é também o que leva a desqualificar o triunfo efetivamente obtido -"foi só por um centímetro que Maurren Maggi ganhou aquela medalha" [ouro no no salto em distância].O absurdo dessa afirmação fica patente se lembrarmos que, nesse nível altíssimo de desempenho, a diferença entre vencedores e vencidos é sempre diminuta -alguns centésimos de segundo numa das vitórias de Michael Phelps, entre o terceiro e o quarto lugares no revezamento masculino 4 x 100 m e em outros casos relatados pela imprensa.Será que os vencedores dessas provas são realmente tão superiores aos outros participantes? Excetuando alguns casos extraordinários, como os de Usain Bolt [Jamaica, atletismo] e Michael Phelps, isso não é verdade.A prova? Em competições anteriores, foram vitoriosos os derrotados de agora e vice-versa: a seleção feminina de futebol perdeu para as alemãs o campeonato mundial de 2006, mas ganhou delas em Pequim; o time masculino de vôlei venceu os italianos, mas havia perdido para eles em 2004; Tatiana Lebedeva [Rússia, salto em distância] foi campeã na Olimpíada de Atenas e vice na da China; e assim por diante.Virtù e fortuna Para o esporte vale o que escreveu Maquiavel a propósito da política: o sucesso não depende apenas da "virtù", mas também da "fortuna"."Virtù" é o que o combatente traz consigo: seu preparo técnico, seu conhecimento do terreno e do adversário, a qualidade de suas armas. "Fortuna" é o fator imprevisível que favorece um ou outro -a lama no campo de batalha, o erro do oponente, a vara que faltava no estojo de Fabiana Murer.A contusão de Liu Xiang [China, atletismo] é obra da "fortuna", assim como o imbecil que agarrou Valdemar Cordeiro na maratona de 2004 ou a falha de Diego Hypólito no instante final."Faço este movimento desde os 12 anos, nunca errei", lamentava-se ele ao rever o filme da prova. Até que um dia... Na mesma entrevista, o ginasta reconheceu onde estava sua fraqueza: "Creio que poderia não ter criado tanta expectativa quanto ao ouro". Ou seja, além da pressão da torcida, o próprio atleta acaba se persuadindo da obrigação de vencer, e isso o perturba no momento decisivo.Inconformada com o resultado da partida final, o rosto molhado de lágrimas, a capitã Marta se perguntava: "Meu Deus, o que foi que eu fiz de errado?". A resposta é: nada. O que determinou o 1 a 0 foi apenas que naquele dia as americanas jogaram mais que as brasileiras.Por outro lado, a "virtù" contribuiu, e muito, para alguns bons resultados em Pequim. Entre outros exemplos, ressalto o trabalho psicológico com a equipe feminina de vôlei, o cuidado das velejadoras Fernanda Oliveira e Isabel Swan em estudar as condições do lugar em que iriam competir, a equipe multiprofissional de que se cercou a lutadora Natália Falavigna no taekwondo, o apoio dado pela família a César Cielo, a determinação de Ketleyn Quadros e de Maurren Maggi.O que esta escreveu na carta ao seu técnico -"dei duro e estou preparada"- não garantia a vitória, mas sem isso ela jamais chegaria.Contraprova: a "pátria de chuteiras", com muita empáfia e pouco treino, tinha chances remotas contra uma Argentina que se preparou melhor -e merecidamente levou o título.É tempo de deixarmos de lado o que Nelson Rodrigues chamava de "complexo de vira-lata". Ao invocar absurdos como a suposta incapacidade nacional para manter a cabeça fria na hora H, não apenas estamos faltando com a verdade -desde a invenção dos esportes modernos, inúmeros brasileiros venceram finais com tranqüilidade, assim como outros foram prejudicados pelo nervosismo ou pela arrogância- mas ainda apequenamos o valor de resultados conseguidos com esforço hercúleo, independentemente do metal das medalhas -ou da ausência delas.Acaso aquelas duas famosas polegadas tornavam Martha Rocha menos bonita? Que o diga quem se lembrar do nome da Miss Universo de 1954.
RENATO MEZAN é psicanalista e professor titular da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). Escreve na seção "Autores", do Mais!
RENATO MEZAN é psicanalista e professor titular da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). Escreve na seção "Autores", do Mais!
Nenhum comentário:
Postar um comentário