“Aos 5 anos o quarto que dividia com meu irmão tinha portas e janelas com persianas. Sempre que pegava no sono olhando para minhas janelas e persianas, adormecia olhando pelos interstícios da persiana e imaginando que uma luz invadiria o quarto e seria cegante, uma luz verde. Pensava que naquela noite os marcianos pousavam lá, escolhiam a sacada de meu quarto. Eles podiam ser amigos, procurando contato na solidão do universo, ou podiam ser invasores para nos exterminar. Me perguntava por que os marcianos teriam luz verde. Eu tinha visto o filme A Guerra dos Mundos, mas era em preto e branco. Um dia lembrei que o cartaz desse filme era colorido e tinha marcianos com raios verdes. De todo modo, a chegada dos marcianos me acalmava porque no dia seguinte não haveria aula. Havia aí algo de prazer narcisista, porque os marcianos me tinham escolhido. Essa pequena ficção foi o começo de uma longa e tortuosa narrativa de meu ser estrangeiro.”
Com esse relato, Contardo Calligaris iniciou uma fala que buscou mostrar as íntimas relações entre a vida e a narrativa. Vieram à tona diversas histórias que ele próprio foi criando ao longo de sua vida. Nossa experiência é narrativa, significa que fazemos uma silenciosa transformação dos acontecimentos em experiência. Para o psicanalista, o bem-viver, ou viver plenamente, se relaciona ao bem-contar. O bem-contar parece indicar uma linha de conduta para a vida. Quem chora sobre a fluidez da modernidade está convencido que os valores ficaram lá atrás - a essa idéia Calligaris se opõe a Kant. “Kant se ocupou dos limites das qualidades estéticas da obra de arte. Ele chegou a uma conclusão que dispensava o recurso a qualquer aposta metafísica ou em valores externos ou tradicionais. A qualidade estética da obra de arte é um exercício sem fim. Não é um apelo clássico à harmonia da arte. A idéia do estético é sua própria finalidade, um programa ético, uma linha de conduta. Se nossa identidade é narrativa, se bem contar é a mesma coisa que bem viver, a solução moderna que Kant encontra para a obra de arte poderia valer para a vida. Viver bem é contar-se de maneira que nossa vida se baste, seja seu próprio fim”, defende o psicanalista. Segundo ele, não é que não precisemos de transcendência, mas que seja possível em qualquer momento de nossa vida olhar para trás e ver uma boa história, uma aventura que valeu a pena ser contada e vivida. "
Em verde, trecho da palestra de Contardo Calligaris no Fronteiras do Pensamento realizado no salão de atos da UFRGS na última segunda. Juro por Deus que essa palestra me deu um "insight".
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