Diversidade, Liberdade e Inclusão Social

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sábado, 29 de março de 2008

O homem que não era bicho e o cavalo que não era homem


Essa é uma crônica de Zé Pedro Goulart, um bom cronista do cotidiano gaúcho, cuja capital, Porto Alegre é a capital da carroça. É impressionante como tem carroça em Porto Alegre.


O homem que não era bicho e o cavalo que não era homem



De modo que eu vinha guiando meu carro na rua, quando vi esse homem só de bermudas conduzindo uma carroça velha. Você não vê (ou se vê, é raro) pessoas dirigindo automóveis sem camisa, entretanto é comum homens conduzirem carroças assim - é um caso aceito. Como é aceito que índios andem despidos, ou padres usem saias. O que não é aceito é que se maltratem animais nas ruas - especialmente nessa nossa época em que os bichos são protegidos por entidades constituídas para isso - e o homem chicoteava com vigor o cavalo que puxava a carroça. Era um trabalhador na luta pelo pão de cada dia, o que poderia amenizar a situação. Mas aquilo dava pena, o animal estava judiado, quase pele e osso. Andava cabisbaixo, encilhado, amarrado, chicoteado.Parei do lado da carroça, abri o vidro elétrico e com isso perdi um tanto do ar condicionado do auto. O calor que veio da rua incendiou minha alma que já queimava de indignação. Como não sou índio, eu estava completamente vestido; e como não sou padre também, não estava com uma saia arejada. Mesmo assim, repleto de bons sentimentos, protestei. "É necessário bater nele desse jeito?". E lembrando algum aprendizado remoto na vida, conciliei: "Não dá para "mostrar" o chicote apenas?" O carroceiro me olhou e sorriu: "Ah, essa égua só anda a pau."A situação piorou: o cavalo era uma guria. Uma moça. Ou ainda, uma senhora. Quem sabe não terá tido filhos, outros cavalos que andam por aí a puxar carroças e serem chicoteados. Me deu vontade de brigar com o sujeito, mas o sorriso dele, compreensivo com meu arroubo, me desconcertou. Ele que não tinha vidro elétrico nem ar condicionado. Talvez num ato alucinado, desmedido, eu pudesse fazer-lhe uma proposta pela égua: passar a cuidar dela, dar banho, comida e, mais do que tudo, carinho. Era uma idéia maluca mas corajosa, aquela. Um movimento contrário à onda implacável e cruel do nosso destino de dor e morte. Afinal: "Há sempre uma loucura no amor. Mas há sempre um pouco de razão na loucura", como disse Nietzsche. Aliás, reza a lenda que ele terminou de enlouquecer (terminou porque ele já vinha derretendo os fusíveis há tempos) quando viu um homem açoitando um cavalo na rua. Mas eu, sem sequer me dar o direito de endoidar, desisti. Chicoteei o pedal do acelerador e com isso acionei os mais de cem cavalos do motor do meu carro e me mandei dali. Deixando a égua, o sujeito, e aquela fatia de vida miserável para trás. "Até os mais corajosos (e nem é o meu caso) raramente têm a coragem para aquilo que realmente sabem". Essa também é do bigodudo.

3 comentários:

PoPa disse...

Caro Maia, a quantidade de carroças em Porto Alegre é algo muito grande. E quem sai da cidade rumo ao sul do Estado, ao final da tarde, encontra dezenas destes veículos a atravessar as pontes do Guaíba, causando transtornos e freqüentes acidentes, com a pior, claro, para os carroceiros. Estes pobres animais sobrevivem apenas de pasto da pior qualidade e são obrigados a esforços muito maiores do que são capazes.

O que nos leva a outro problema, este escondido. Com tantos cavalos na cidade, com um nível de vida muito ruim, devem morrer jovens, não? digamos que aguentem três ou quatro anos deste trabalho. Ora, cinco! Isto quer dizer que aproximadamente 20% da população equina morre atualmente. Alguém já falou em 20 mil carroças, o que quer dizer que uns 4.000 cavalos morrem por ano, o que significaria uns 80 animais por semana (refaçam as contas que estou com preguiça...). Alguém aí costuma ver carcaças de cavalos nos rios, terrenos, ruas de Porto Alegre? Existe um cemitério de cavalos? Ou o povo anda comendo muitos pastéis e linguiças?

Carlos Eduardo da Maia disse...

Prezado Pampa, é assustador o número de carroças em POA. E vc disse bem, é impressionante o número de carroças que atravessa diariamente a ponte do Guaíba. São pessoas que moram perto do lixão ali na ilha das Flores. E as autoridades nada fazem. Muitas carroças são conduzidas por menores. Mais uma vitória da ditadura do pensamento politicamente correto. É um assunto delicado que ninguém toca e todo mundo tem medo de tocar. Por que em outras cidades como Florianópolis, Curitiba, São Paulo e RJ não existem essa quantidade de carroças?

PoPa disse...

Na verdade, Maia, há um conflito neste assunto. Enquanto se pensa que é um problema social, a necessária existência das carroças, na verdade o que acontece é um problema muito maior, que é o transporte de lixo para as comunidades. E lá, lançados diretamente no rio ou deixado por ali mesmo. Nas cidades mais "civilizadas", o lixo vai para o lixo! E existem locais de reciclagem adequados, onde este povo pode trabalhar. Ou quase isso, pelo menos. O que não dá é para permitir este passeio do lixo!