Diversidade, Liberdade e Inclusão Social

Foto: Obama, Cameron e Helle Thorning-Schmidt


segunda-feira, 31 de março de 2008

"Plus ça change...' Nelson Ascher


Plus ça change


"Eu vi coisas nas quais vocês, humanos, não acreditariam", diz o andróide Roy a Deckard no final de "Blade Runner". Bom, eu também vi algumas não menos incríveis como, por exemplo, olhando da janela de um Gordini novinho em folha, a colisão de um Aero Willys com um Simca Chambord na esquina da av. Ipiranga com a av. São João. A radiopatrulha que atendeu a ocorrência era um Fusca e, entre os veículos que transitavam nas cercanias, creio que não faltavam Vemaguets, Karmann Ghias, Romizettas e Lambretas.Como o "centrão" inteiro me era familiar, desde o largo do Paissandu (onde, talvez na minha recordação mais antiga da cidade, eu pedira à minha avó que me comprasse o bonequinho com uma vassoura nas mãos que um camelô vendia) até a praça da República (na qual eu corria atrás dos marrecos), não estranhei que, com o bonde parado por causa do acidente, seus passageiros aproveitassem para, descendo e enfrentando a fila habitual, tomar o expresso tirado de uma das poucas máquinas Gaggia importadas da Itália que havia em São Paulo."O passado", escreve L. P. Hartley no início de "O Mensageiro" (The Go-Between), "é outro país" e, cinqüenta anos atrás, a região de dois ou três km2 na qual nasci e vivo era um outro planeta. A televisão familiar não o alcançou antes de eu completar seis anos, mas foi nela que assisti, em branco e preto, tanto à vitória na Guerra dos Seis Dias, como à Guerra da Biafra.Ter habitado a segunda metade do século 20 implica constatar que, malgrado alterações maiores do que as que costumavam ocorrer em meio milênio, tampouco é possível negar que "plus ça change, plus c'est la même chose" (quanto mais as coisas mudam, mais elas continuam iguais).Quanto às mudanças, elas ultrapassam o enumerável. Vejamos: a vitrola mono se transformou em toca-discos estéreo, em gravador de rolo, de fita cassete, em toca-CD e em MP3 player. Nem por isso Bach, Beethoven ou Puccini saíram de moda e inclusive Elvis Presley e os Beatles se revelaram menos transitórios do que se pensava.A evolução tecnológica, no entanto, permitiu que a música ouvida na sala de estar passasse ao quarto dos adolescentes e, depois, adquirida on-line, se tornasse quase autisticamente individual e portátil. Paralelamente, os filmes que a TV transferira do cinema para casa ganharam flexibilidade espaço-temporal com o videocassete, qualidade com o DVD e praticidade com o computador pessoal. Já seus temas e o tratamento destes variaram menos do que o esperado após terem sido originalmente formulados e registrados há 2.500 anos, em grego.Embora os novos meios de transporte prometessem, por seu turno, encurtar as distâncias, o que eles comprimiram foi o tempo, e é justo que paulistanos forçados a cruzar a cidade ponham em dúvida a eficiência do automóvel cujo uso na hora do rush nem o sistema de som e o ar-condicionado tornam menos exasperador. Que voar seja agora para muitos não luxo, mas necessidade é uma contingência que submeteu as viagens aéreas a incômodos idênticos. Seria fácil multiplicar esses exemplos paradoxais que, como sempre, confirmam a única lei indiscutível da história, aquela que Marx não descobriu: a das conseqüências imprevistas.Não houve progresso? Houve. A expectativa de vida aumentou em toda parte. Vive-se mais e mais saudavelmente. Graças à economia de mercado, mais gente (em números absolutos e relativos) come mais, melhor e tem acesso a uma variedade maior. Onde há fome (na África Central, Cuba, Coréia do Norte), isso se deve aos desvarios políticos e ideológicos locais.A tais melhoras, porém, contrapõem-se estagnações e regressões igualmente significativas. Deste modo, quando o genocídio moderno que, inaugurado pelos turcos ao massacrar os armênios, atingira a condição de obra-prima com o Holocausto repetiu-se no Camboja do Khmer Vermelho e em Ruanda, o silêncio ensurdecedor foi o da indiferença generalizada. Entre outros reveses estão o anti-semitismo que, antes europeu, virou global e a "desdemocratização" provocada, na América Latina, pelo neopopulismo e, no Velho Continente, pelo Estado assistencialista.A escolha de algo capaz de desequilibrar o empate técnico acima depende sobretudo do gosto pessoal. Para mim, se o saldo melhorou marginalmente desde que estou por aqui, ou seja, se há um mínimo lucro líquido, este decorre do surgimento da internet, que, além de me permitir comprar livros novos ou usados do mundo inteiro sem me erguer de minha cadeira, deu-me acesso à biblioteca sobre a qual Jorge Luis Borges falava: a de Babel.


Artigo de Nelson Ascher publicado na Folha de hoje.
Imagem de um Simca Jangada 1962.

2 comentários:

Anônimo disse...

Quero que se manifeste sobre as fraudes no DETRAN-RS. Por favor, fale de teu povo
Abs!

Carlos Eduardo da Maia disse...

Cadeia para os fraudadores do DETRAN, sempre defendi isso. Não importa qual partido ou se estão na linha de apoio da governadora. E se tiver provas do envolvimento dela, deve ela responder por essas falcatruas, inclusive com a perda do cargo.