Edmundo Desnoes já não fuma charutos. Desde que trocou a Cuba natal pelos EUA, nos anos 70, eles já não têm o mesmo sabor. "É necessária a umidade do trópico para gozar a lenta mordida de um puro, aqui, eles ardem", diz, em entrevista por telefone, desde Nova York. Além dos charutos, outros clichês cubanos, como a própria Revolução (1959), costumam ser tema de seus escritos.Desnoes, 78, que desembarca nesta semana no Brasil para participar do 3º Festival de Cinema Latino-americano, é o autor do livro que foi levado às telas pelo conterrâneo Tomás Gutiérrez Alea (1928-1996), "Memórias do Subdesenvolvimento" (1968), homenageado pelo evento.Quarenta anos depois de seu lançamento, a renomada obra ainda impressiona pelo modo como, sendo praticamente contemporânea aos fatos que relata, oferece um olhar crítico que usualmente só é possível lograr depois de passados muitos anos a partir dos acontecimentos. A trama acontece na Cuba dos anos 60. O protagonista, Sergio, é um burguês culto que assiste à revoada de amigos e da própria mulher para os Estados Unidos, todos assustados pela revolução socialista.Ele fica, pois quer "ver o que vai acontecer". O pano de fundo são os meses entre a invasão da baía dos Porcos (1961) e a crise dos mísseis (1962).Sergio não é um contra-revolucionário, mas tanto tem aversão a seus pares por sua futilidade como aos que são responsáveis pela nova ordem. Ele caminha por Havana e já aponta com nostalgia uma decadência que ainda vai acontecer. Tudo é muito subjetivo. Esconde-se em casa, mas é inevitável sentir que a História está acontecendo do lado de fora. "A Revolução entrou na nossa casa, no nosso banheiro. A agonia de Sergio dentro do próprio apartamento é o que sentíamos na época", conta Desnoes.Ao contrário de Alea, que passou a vida em Havana, sempre criticando o regime, Desnoes deixou a ilha na década seguinte. "A partir de 1970, o Partido Comunista começou a controlar também a cultura. Até então não se tinha clareza de que seria necessário optar pela Revolução ou pelo exílio. Depois não houve mais dúvidas. Eu podia tolerar a escassez material, mas não a censura", diz. Só depois de mais de 20 anos ele voltou à Cuba, em 2003, para integrar o júri do prêmio Casa de las Américas.Desnoes lembra-se do trabalho com o amigo com admiração. "O livro se passa na consciência de Sergio, e Alea conseguiu dar contornos realistas à lucidez do personagem." O filme está disponível em DVD no Brasil; já o livro terá sua primeira edição em português lançada durante o evento. O cubano conta que "Memórias Póstumas de Brás Cubas", de Machado de Assis, foi uma de suas inspirações. "A forma de diário satírico, do autor consigo mesmo, tirei de Machado", diz. Já Alea usou as próprias influências cinematográficas, como Luis Buñuel e os neo-realistas italianos.As mulheres são tratadas de modo agressivo. Sergio fala muitas vezes que é preciso "civilizá-las", pois sua ignorância é uma das características dos países subdesenvolvidos. "Fui machista sim. Naquela época o feminismo ainda não tinha força, e se podia dizer essas coisas", ri. Em 2007, Desnoes teve a continuação de "Memórias do Subdesenvolvimento", o romance "Memórias do Desenvolvimento", também levado ao cinema, desta vez pelas mãos do jovem cineasta Miguel Coyula.O autor sente que existe um interesse renovado por Cuba, por conta do atual momento político. "Passou a época dogmática, passou o fanatismo contra-revolucionário, veio a era da ambigüidade. E é a mesma ambigüidade que existia na época que, hoje, alimentada pelos acontecimentos, renova o interesse pelo filme."Mais Alea Além de "Memórias do Subdesenvolvimento", o festival exibirá mais sete filmes de Alea. Por meio de seus longas, o cineasta mostrava a ineficácia do sistema em tornar a sociedade mais igualitária e a gravidade da repressão que aumentava.A burocracia é um de seus temas favoritos. Nela estão baseadas as "necro-comédias" "Morte de um Burocrata" (1966) e "Guantanamera" (1995). No primeiro, o sobrinho de um operário considerado tão exemplar que é enterrado junto com sua carteira de trabalho tem de exumá-lo, pois, sem esse documento, a viúva não poderia receber a pensão do Estado. Depois, ao tentar re-enterrar o defunto, ele tem de passar por infinitas seções de repartições públicas."Guantanamera" também trata da dificuldade de sepultar uma senhora que morreu num canto do país, mas tem de ser enterrada noutro lugar. Sua obra de maior êxito comercial, "Morango e Chocolate" (1993), está no ciclo. Nela, o homossexual Diego tenta levar para a cama o revolucionário Davi, que só se aproxima dele porque quer denunciá-lo. Nem uma coisa nem outra acontecem, e o filme torna-se um debate sobre aquilo que a Revolução estava sufocando, como a homossexualidade e os livros e músicas que foram condenados ao esquecimento por serem anteriores ou contrários ao processo.
Artigo de Sylvia Colombo, na Folha de hoje.
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