Imagem Comum do Cotidiano Brasileiro de Nossos Dias: um Catador de Papel bem Nutridinho.
Segue a polêmica discussão entre o jornalista Ali Kamel e o cineasta José Padilha sobre a questão da fome no Brasil.
A fome no Brasil é mesmo uma questão residual?
Tomara que sim.
Este blog já publicou o artigo Garapa de Padilha. Aqui.
A resposta de Kamel, no artigo Fome, publicado na Folha de hoje está abaixo.
Recomendo.
Fome
Ali Kamel
Não quero briga com o cineasta José Padilha, nada tenho contra ele. Mas também não quero brigar com os fatos.No final de junho, ao falar de seu novo filme para a Folha, Padilha disse que há no Brasil 11,5 milhões de pessoas passando fome. Como esse número não é correto, escrevi artigo no "Globo" contestando-o. Em resposta, ele, em parceria com Francisco Menezes, publicou neste espaço ("Tendências/Debates", 16/7) o artigo "Garapa", uma referência ao seu documentário, que retrata o dia-a-dia de três famílias que passam fome no Ceará (as crianças, na falta de comida, alimentam-se de uma mistura de água e açúcar, a garapa, daí o nome do filme). Padilha e Menezes enfrentaram as questões que propus com algumas provocações e muitos erros. Vou ignorar as provocações, mas apontar os erros principais.1) Padilha e Menezes disseram: "A Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) do IBGE, de 2002-2003, revelou que, nos domicílios de até um salário mínimo por pessoa, mais da metade do consumo calórico era de açúcar". Isso é inteiramente falso, tão falso que não imagino como alguém que faz um filme sobre fome erre assim. A POF mostra que, nas famílias mais pobres (rendimento per capita de até um quarto de salário mínimo), a dieta é composta por 69% de carboidratos, 12% de proteínas e 19% de gorduras. Proporção exatamente dentro da normalidade para a OMS: entre 55% e 75% devem ser carboidratos, entre 10% e 15%, proteínas, e entre 15% e 30%, gorduras. A proporção de proteína para os mais pobres (12%) é considerada ótima.A participação do açúcar na dieta deve ser de no máximo 10%, mas ela é alta em todas as faixas de renda. Proporcionalmente, porém, ela é melhor entre os mais pobres: das calorias obtidas de carboidratos, 13% vêm do açúcar. Os de renda mais alta têm apenas 52% da dieta vindos de carboidratos (abaixo do mínimo de 55%) e, destes, 11% vêm do açúcar. O açúcar, entre os mais pobres, representa assim 13 pontos percentuais em 69 (56% dos carboidratos, portanto, não são açúcar). E, entre os de maior renda, representa 11 pontos percentuais de 52 (apenas 41% não são açúcar).Espero que se desculpem publicamente pelo equívoco. 2) Padilha e Menezes combatem a minha proposta de dar o Bolsa Família apenas a quem passa fome e aumentar o valor recebido pelos beneficiários. E perguntam: "Ora, mas, nesse caso, o que aconteceria com as famílias excluídas do programa? Quantas se tornariam desnutridas novamente?". Novamente? Mas, como novamente, se a POF, realizada entre 2002 e 2003, antes do Bolsa Família, já mostrava que o índice de pessoas emagrecidas no Brasil era de 4%, abaixo dos 5% aceitos pela OMS?A maneira mais viável de detectar a fome em grandes grupos é medindo e pesando a população, porque, se a ingestão de calorias for menor do que a necessária, os indivíduos emagrecerão. O índice de até 5% de magros é aceito como normal porque essa é a proporção de indivíduos magros por natureza em qualquer grupo.No Brasil, repito, esse índice era de 4%, contra 19% no Haiti, 38% na Etiópia e 49% na Índia. Em apenas alguns poucos estratos a proporção excedeu os 5%: sempre mulheres, de uma maneira geral da zona rural e das faixas de renda mais baixas (o pico foi de 8,5%). Os dados da Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde, realizada em 2006 e divulgada no início de julho, mostram, porém, que essa situação foi superada: o índice só ultrapassou ligeiramente os 5% entre as mulheres sem escolaridade (5,3%) e com mais de seis filhos (6%). A fome, portanto, é residual.3) Padilha e Menezes falam em fome oculta, "em que o indivíduo pode apresentar sobrepeso apesar de estar carente de nutrientes essenciais". Jogo de palavras: em tese, é possível que um obeso possa ter deficiência de micronutrientes, mas é absolutamente falso que isso tenha a ver com fome. Tem a ver com informação. Se o indivíduo é pobre, mas tem renda suficiente para se tornar obeso, é a falta de informação que o faz ficar sem os micronutrientes de que necessita.Com o mesmo dinheiro, e com boa informação, ele poderia se alimentar corretamente. Prova disso é que a falta de nutrientes em obesos pode ocorrer, e ocorre, em todas as classes.O fato inquestionável é que um obeso tem muito menos chances de ter deficiência de micronutrientes do que indivíduos emagrecidos pela fome. Os conceitos de fome gorda e fome oculta induzem a erro: as pesquisas mostram que não é verdade que a dieta dos mais pobres leve à obesidade.Insisto: com "Tropa de Elite", Padilha pretendeu fazer ficção com um pé na realidade; com "Garapa", fará documentário a partir de uma premissa fictícia.
ALI KAMEL , 46, jornalista, é diretor-executivo de jornalismo da Central Globo de Jornalismo. É autor de "Não Somos Racistas" e "Sobre o Islã".
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