Diversidade, Liberdade e Inclusão Social

Foto: Obama, Cameron e Helle Thorning-Schmidt


quarta-feira, 16 de julho de 2008

Garapa - José Padilha


Foi surpreendente constatar que o novo filme de José Padilha foi objeto de crítica preventiva antes de ser lançado nos cinemas e, dessa vez, sem nem ao menos ter sido alvo de pirataria! Em artigo publicado em "O Globo", Ali Kamel escreveu: "Se, em seu novo filme, Padilha usar três famílias que passam fome como exemplo de 11 milhões, terá sido induzido a erro pela leitura equivocada de uma pesquisa. Se não fizer as ressalvas, o filme não será a sua volta ao documentário, mas a sua permanência na ficção". O filme, que o jornalista não viu, se chama "Garapa". A pesquisa a que ele se refere foi feita pelo Ibase. Ambos tem o objetivo de apoiar a luta contra a fome no Brasil."Garapa" documenta o dia-a-dia de três famílias brasileiras que sofrem de desnutrição. A idéia é mostrar como essas famílias lidam com a falta recorrente de alimentos. Sendo esse o objetivo do filme, é claro que o caráter documental não depende da quantidade de famílias desnutridas no Brasil.

Mas vamos supor que "Garapa" afirmasse que, segundo o Ibase, "x" milhões de famílias vivem em condições semelhantes às famílias que documentou. Se "x" fosse diferente do número de famílias que vivem nessas condições, "Garapa" se tornaria uma ficção? Certamente que não. Infelizmente, os adultos e as crianças documentadas, bem como o seu sofrimento, continuariam sendo reais.

No debate sobre a fome, muitas vezes o teor dramático da realidade que está sendo debatida se perde perante o caráter metodológico e estatístico dos argumentos apresentados. Como disse Stálin: "A morte de um indivíduo é uma tragédia, a morte de milhares é uma estatística".A idéia de que, diante de considerações metodológicas, a tragédia de três famílias brasileiras pode ser relegada à categoria de ficção confirma a frase de Stálin e comprova a necessidade de documentários como "Garapa".

Quanto ao programa Bolsa Família, há quem pense que sua abrangência ótima seja função do número de brasileiros que sofrem de desnutrição. A idéia seria restringir o programa a essas pessoas e aumentar o valor recebido por elas. Ora, mas, nesse caso, o que aconteceria com as famílias excluídas do programa? Quantas se tornariam desnutridas novamente?À luz dessas perguntas, fica claro que o relevante para quem discute a abrangência do Bolsa Família não é o número de desnutridos que existe no Brasil hoje, mas o número de desnutridos que existiria para diferentes cenários de abrangência e de valores de contribuição família/mês.

A obtenção desses dados é complexa e não se restringe à medição do peso e da altura da população. Os especialistas mais renomados na área tentam mensurar isso a partir de avaliações sobre a renda das famílias, de questionários sobre o consumo de alimentos e sobre a percepção das famílias com relação à sua própria insegurança alimentar. Poucos especialistas no mundo discordam desse tipo de avaliação, utilizada pela ONU, pelo governo americano e pelo IBGE.

É importante conhecer o número de desnutridos no Brasil. Mas não para definir a abrangência do Bolsa Família, e sim para determinar quantos brasileiros precisam de diferentes políticas de segurança alimentar, além do Bolsa Família.

Porém, quem pensa que a fome pode ser identificada só pela medição de peso e altura pode estar incorrendo em erro. Josué de Castro, dentro da contribuição que deu para o combate à fome, alertava para a chamada "fome oculta", em que o indivíduo pode apresentar sobrepeso apesar de estar carente de nutrientes essenciais.

Esse é um fenômeno cada vez mais freqüente entre os pobres, pois os alimentos mais calóricos são os de menor preço. "Garapa" mostra isso. Não dispondo de comida, famílias se alimentam de açúcar.

Nesse sentido, a Pesquisa de Orçamento Familiar do IBGE, de 2002-2003, revelou que, nos domicílios pesquisados com rendimento de até um salário mínimo por pessoa, mais da metade do consumo calórico era de açúcar. É verdade que a POF não detectou em nenhum estrato da população dietas à base de garapa. Mais isso não é de estranhar, uma vez que o IBGE não criou a categoria "garapa" ao consolidar os dados.O Bolsa Família é um programa de simples execução e de retorno humanitário rápido. Quem defende a alocação de parte dos seus recursos em educação precisa especificar um projeto educacional e demonstrar que tanto o projeto quanto seu executor serão eficientes a ponto de compensar rapidamente a perda de receita de quem ficou de fora do programa. E precisa detalhar o impacto que essa perda terá na vida dos excluídos. Afinal, reduzir a abrangência do Bolsa Família é fazer um corte significativo no orçamento de pessoas que vivem com muito pouco em um país que sempre transferiu renda dos mais pobres para os mais ricos.Não se deve fazer uma proposta dessas de maneira vaga, como se o simples uso da palavra educação resolvesse tudo. Investimentos em educação são necessários, mas apenas se forem feitos de forma planejada, responsável e respeitando os direitos humanos.


Artigo publicado na Folha de hoje.

JOSÉ PADILHA , 40, cineasta, é diretor dos filmes "Ônibus 174", "Tropa de Elite" e "Garapa". FRANCISCO MENEZES é diretor do Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, ONG criada pelo Betinho) e membro do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.
Imagem de Debret: escravos tirando açucar da cana.

Um comentário:

Anônimo disse...

Yutarets! kasagad bah!