Diversidade, Liberdade e Inclusão Social

Foto: Obama, Cameron e Helle Thorning-Schmidt


quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Brasilianização do Mundo




Devir-Brasil


Giuseppe Cocco

Houve uma reviravolta: a "brasilianização" do mundo passou a significar, do ponto de vista dos países centrais, um retrocesso generalizado


A relação entre o Brasil e o mundo é uma velha história.Ela diz respeito à própria constituição da economia-mundo pela colonização européia do novo mundo. Contudo, há uma dimensão mundial do Brasil moderno que concerne a um de seus mitos fundadores: seu ser o país do futuro.Paradoxalmente, nas últimas duas décadas, houve uma surpreendente reviravolta: a "brasilianização" do mundo passou a significar, do ponto de vista dos países centrais, um retrocesso generalizado. Do ponto de vista do Brasil, o futuro passou a ser o próprio Brasil, ou seja, a reiteração globalizada dos fenômenos de desigualdade econômica, fragmentação social, segregação espacial e violência que sempre marcaram a modernização brasileira.Ora, o duplo pesadelo da brasilianização do mundo só se sustenta pela separação rígida e hierárquica dos pontos de vista. Na realidade, a globalização se caracteriza pela hibridização de centro e periferia, de "progresso" e "atraso", de "inclusão" e "exclusão". O que está no cerne da nova clivagem é a relação com o "outro".A globalização é atravessada por uma alternativa radical: ela diz respeito a suas dimensões temporais.De um lado, ela se apresenta como novo despotismo de um mundo reduzido a um único e inevitável futuro.Futuro que pode coincidir com a catástrofe anunciada: a brasilianização.Seu tempo é unívoco e linear: o "progresso", que modula uma série infinita de fragmentos sociais e espaciais nas representações abstratas do mercado. Aqui, a relação com o outro, humano (cultura) ou não-humano (natureza), é de dominação: pela destruição ou pela homogeneização.Por outro lado, a globalização abre-se à multiplicidade dos mundos possíveis. Sua temporalidade é aquela aberta do devir. Aqui, a flexibilidade social e econômica é manifestação de uma plasticidade cuja dinâmica se alimenta da hibridização incessante para dentro e para fora, além do dentro e do fora. A relação com o outro é antropófaga, bem nos termos da proposta revolucionária de Oswald de Andrade e de sua renovação pela antropologia de Viveiros de Castro: absorver o outro e, nesse processo, alterar-se, devir.Sabemos que o Brasil constitui um enigma para os estudos "mainstream", mas também para os estudos pós-coloniais e os da "colonialidade" do poder. Isso porque o Brasil é, desde logo, pós-colonial, metrópole na colônia. Um poder monstruoso que, desde o início da colonização, se articula por dentro dos fluxos da hibridização, ao passo que a própria hibridização constituiu o terreno privilegiado de enfrentamento e constituição.Paradoxalmente, portanto, o Brasil se constituiu originariamente numa das maiores experiências coloniais e escravagistas sem, com isso, se encaixar no que os estudos pós-coloniais definem como o paradigma da segregação. O "caldeamento" brasileiro se apresenta como uma potência monstruosa de diferenciação e constituição da liberdade. Mas isso não dissipa o pesadelo da "brasilianização". Como ativar o devir? De que "mundo" estamos falando?Paulo Arantes lembra que Mario de Andrade costumava dizer que o "luxo de antagonismos" da mestiçagem enaltecida por Freyre e Oswald escondia na realidade uma "imundície de contrastes". Ora, na troca de trocas de pontos de vista, a relação entre lixo e luxo, subdesenvolvimento e desenvolvimento, pobreza e riqueza pode ser não-dialética.Ou seja, se na "imundicie de contrastes" temos o im-mundo do poder sobre a vida (biopoder), da pobreza e do racismo, é nesse mesmo "lixo" da hibridização que há a potência da vida (biopolítica), da significação e, pois, a riqueza do pobre.Estamos diante daquela mesma alternativa radical: entre a globalização como perda-de-mundo (im-mundo do mercado dos fragmentos, da crise dos valores e de suas "Bolsas") e a produção ilimitada de novos valores, criação do mundo.Por trás do estigma da brasilianização, temos um devir-Brasil do mundo e um devir-mundo do Brasil: é Lula, presidente retirante e operário que abre o caminho a Obama, presidente "vira-lata" que nunca resolve de maneira identitária a ambivalência de seu devir-mestiço. Mas esse plano é também o da ação afirmativa (política de cotas), da qual participou Obama, que deve consolidar-se no Brasil como terreno constituinte do arco-íris da mestiçagem.É nessa multiplicidade dos pobres -indígenas, favelados e negros no Brasil; hispânicos, imigrantes e negros nos Estados Unidos- que a libertação aparece como um começo: devir-Brasil do mundo e devir-mundo do Brasil.



Artigo na Folha de hoje.
GIUSEPPE COCCO , 52, cientista político, doutor em história social pela Universidade de Paris, é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Entre outras obras, escreveu, com Antonio Negri, o livro "Glob(AL): Biopoder e Luta em uma América Latina Globalizada".

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