Não concordo com o sociólogo alemão Robert Kurz, mas sou seu leitor. É muito importante ler quem a gente não concorda. Kurz escreve bem, tem boa cultura, mas eu não concordo com ele. Acho que Kurz exagera nas suas previsões ácidas sobre a catástrofe do capitalismo. Ele sempre foi assim. A revista que ele edita se chama Krisis. O nome já diz tudo.
Artigo de Robert Kurz publicado no Caderno Mais da Folha de ontem.
O Último Messias
Robert Kurz
Há um velho debate acerca do papel da personalidade na história. Os teóricos da estrutura apontam para os processos sociais objetivos; não resta senão às grandes figuras tornarem-se sua expressão. Os teóricos da ação dizem contra isso: no início era a ação. Crença e vontade podem mover montanhas. Ambos só estão parcialmente corretos. Desenvolvimentos sociais não se realizam em si mesmos; eles necessitam da ação interventora. Por outro lado, a ação relaciona-se a condições estruturais preexistentes enquanto subjazer na sociedade uma dinâmica cega, como é o caso no capitalismo. Por isso, é exatamente nas grandes crises que são requeridas personalidades carismáticas que podem gerar uma atmosfera estimulante de despertar. O momento religioso desse mecanismo é inconfundível. As esperanças, desejos e medos ligam-se a um messias político quando uma ruptura balança a sociedade. A questão é se o carisma será capaz de suportar o novo ou se apenas dá uma forma de desenvolvimento à catástrofe do velho. O "Kennedy negro" Barack Obama não representa uma superação do capitalismo global, mas sua renovação. Seu carisma não surgiu no contexto de um movimento social com fins emancipatórios, mas como máscara no contexto das atividades midiáticas e políticas dominantes.
Se Obama tornou-se um depositário de simpatia no mundo inteiro e leva as pessoas nos EUA às lágrimas, isso ocorre porque representa a crença num retorno a um crescimento substancial e regrado pelo Estado, que cria bons postos de trabalho e salva o ambiente. Trata-se da crença, ao mesmo tempo, na superação de antigas concepções de inimigos, no equilíbrio do poder e na participação das raças, a maioria da humanidade. A força gravitacional dessas esperanças é produzida pela classe média mundial, que, em vista da crise, quer mudar tudo, a fim de que, fundamentalmente, tudo possa permanecer como está.
Força limitada
Mas essa crença não moverá montanhas. A ruptura de 1989 levou à transformação do velho capitalismo de Estado no capitalismo financeiro globalizado. Em vez disso, a ruptura de 2008 marca a crise e os limites internos desse sistema mundial em si. Obama se tornará o homem mais poderoso de um mundo que, com a máxima probabilidade, não consegue mais se transformar a partir de seus próprios fundamentos. A força para a configuração das relações já é limitada para o 44º presidente dos EUA se considerarmos apenas o Orçamento arruinado do Estado. Isso não é, porém, somente a conseqüência de uma política equivocada da administração Bush, como muitos querem acreditar, mas o resultado de uma crise estrutural profunda do capital mundial. Obama não pode virar bruscamente o leme, mas apenas administrar a dinâmica incontrolável dessa crise. A previsível depressão global irá destruir os precários postos de trabalho do crescimento "impelido pelas finanças", ao invés de criar novos. Serão atingidos justamente os afro-americanos que ascenderam socialmente nos EUA e a nova classe média na Ásia. E, se o clima for poupado, isso ocorrerá não devido a acordos políticos finalmente efetivos, mas porque a conjuntura deficitária se extinguirá. A propósito, trata-se de algo semelhante à ruína das indústrias do capitalismo de Estado no bloco oriental durante os anos 1990, que temporariamente diminuiu a emissão global de gases responsáveis pelo efeito estufa.
Novo balanço de poder
Também o equilíbrio entre oposições políticas corre o risco de ficar em ponto morto. O fim das guerras pela ordem mundial no Afeganistão e no Iraque não é anunciado por meio de acordos de paz, mas por meio da ruína previsível da capacidade de financiamento militar. A retirada da máquina militar americana poderia, portanto, desembocar em um curso caótico. Do mesmo modo, um entendimento político com os países produtores de petróleo e gás, como a Rússia ou a Venezuela, será inútil caso os regimes locais entrem em colapso, pois, com a depressão dos preços da energia, se rompe a base de seus negócios. Com maior razão, um novo balanço do poder em relação à China pressuporia que o corredor de exportação unilateral sobre o Pacífico continuará. Na verdade, porém, a dependência recíproca se desintegrará assim que o aumento -muito provavelmente inevitável- do dólar desvalorizar as reservas monetárias astronômicas dos exportadores asiáticos. Um deslocamento complacente das relações de poder deverá se mostrar ilusório na mesma medida em que as finanças estatais e as moedas de um número crescente de países se tornarem insustentáveis. Já agora, depois da Islândia, também a Hungria, a Ucrânia e de novo a Argentina são consideradas candidatas à bancarrota de Estado. Mais países virão na seqüência. Obama assumiu o emprego de capitão dos bombeiros global, mas que não consegue nem mesmo contar os incêndios que vão surgindo, enquanto a água para extingui-los seca. Crença e amor, vontade e esperança são coisas bonitas quando encontram uma "condição de possibilidade". O sistema mundial do capitalismo financeiro não oferece um fundamento para isso. O entusiasmo global da obamania ameaça emborcar numa grande decepção. Disso não se deve, porém, responsabilizar uma personalidade cujo carisma repousa sobre pressupostos falsos. A crise do sistema mundial não é uma novela cujo final feliz poderia ser encenado pela mídia. Assim como os EUA são a última potência mundial do capital, da mesma forma Obama talvez seja o último messias político. A humanidade deveria aprender de novo o que, em uma outra constelação histórica, a "Internacional" propagou: "Um ser mais elevado não nos salva, nenhum césar ou tribuno; para nos salvar da miséria, isso nós mesmos temos que fazer". O extinto páthos dessa afirmação é diferente do páthos da obamania.
ROBERT KURZ é sociólogo alemão, autor de "O Colapso da Modernização" (Paz e Terra). Tradução de Erika Werner.
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