O Pesadelo dos Heróis
Slavoj Zizek
Em janeiro passado, quando os EUA lembravam a trágica morte do reverendo Martin Luther King Jr. [1929-68], um professor de história urbana na Universidade de Buffalo chamado Henry Louis Taylor Jr. comentou com amargura: "Tudo o que sabemos é que esse sujeito tinha um sonho. Não sabemos que sonho era esse". Taylor referia-se a um apagamento da memória histórica depois da marcha de King em Washington em 1963, após ter sido ovacionado como "o líder moral de nossa nação". Nos anos que antecederam sua morte, King mudou seu enfoque para a pobreza e o militarismo porque achava que abordar esses temas -e não somente a fraternidade racial- era crucial para tornar a igualdade real. E ele pagou o preço por essa mudança, tornando-se cada vez mais um pária.
O perigo para Barack Obama é que ele tenha feito consigo mesmo o que a censura histórica posterior fez a Martin Luther King: limpou seu programa de temas polêmicos para garantir sua elegibilidade.
Em um famoso diálogo na sátira religiosa de Monty Python "A Vida de Brian", passada na Palestina na época de Cristo, o líder de uma organização revolucionária de resistência judaica afirma apaixonadamente que os romanos só trouxeram sofrimento para os judeus. Quando seus seguidores comentam que, bem, eles introduziram a educação, construíram estradas, irrigação etc., o líder conclui, triunfal: "Está bem, mas fora o saneamento, a educação, o vinho, a ordem pública, a irrigação, as estradas, o sistema de água potável e a saúde pública, o que os romanos fizeram por nós?". Os últimos pronunciamentos de Obama não seguiram a mesma linha? "Represento uma ruptura radical com o governo Bush!" ou "está bem, prometo apoiar Israel incondicionalmente, manter o boicote a Cuba, garantir imunidade às companhias de telecomunicações que burlam a lei, mas ainda represento uma ruptura radical com o governo Bush!". Quando Obama fala sobre a "audácia de ter esperança", sobre "uma mudança em que podemos acreditar", está usando uma retórica de mudança sem conteúdo específico: esperança em quê? Mudar o quê? Não devemos culpar Obama por sua hipocrisia.
Dada a complexa situação dos EUA no mundo atual, até onde um novo presidente pode impor mudanças reais sem provocar um derretimento econômico ou uma revolta política?
Dizer e não-dizer
Mas essa visão pessimista ainda é inadequada. Nossa situação global não apenas é uma realidade concreta, mas também é definida por contornos ideológicos. Em outras palavras, é definida pelo que é dizível e indizível ou pelo que é visível e invisível. Mais de uma década atrás, quando o jornal israelense "Haaretz" perguntou ao então líder do Partido Trabalhista, Ehud Barak, o que ele teria feito se tivesse nascido palestino, Barak respondeu: "Eu teria entrado para uma organização terrorista". Essa declaração não tinha absolutamente nada a ver com endossar o terrorismo, mas tudo a ver com abrir um espaço para um diálogo real com os palestinos. O mesmo ocorreu quando o presidente soviético Mikhail Gorbatchov lançou os slogans da "glasnost" (abertura) e da perestroika (reforma). Não importava se Gorbatchov "realmente queria dizer isso". As próprias palavras desencadearam uma avalanche que mudou o mundo. Palavras nunca são "só palavras". Elas importam porque definem os contornos do que podemos fazer. Nesse sentido, Obama já demonstrou uma capacidade extraordinária de mudar os limites do que pode ser dito publicamente. Sua grande conquista até hoje é que ele, com sua maneira refinada e não provocativa, apresentou ao público temas de discurso que, outrora, já foram indizíveis: a persistente importância da raça na política, o papel positivo dos ateus na vida pública, a necessidade de conversar com "inimigos" como o Irã. Novas palavras E essa é uma grande conquista, que muda as coordenadas de todo o campo. Até mesmo o governo Bush, que primeiro criticou Obama por sua proposta, hoje está conversando diretamente com o Irã.
Se a política americana quiser se livrar de seu atual impasse, precisa de novas palavras que mudem nossa maneira de pensar e agir.
SLAVOJ ZIZEK é filósofo esloveno e autor de "A Visão em Paralaxe" (Ed. Boitempo). Ele escreve na seção "Autores", do Mais! . Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
Caderno Mais da Folha de ontem (domingo)
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