Servidores e serviçais
Cássio Schubsky
Cássio Schubsky
Duzentos anos depois de sua chegada ao país, fugindo de Portugal, a família real volta ao Brasil, com toda a força, desta feita por meio de relatos históricos ou jornalísticos. A sensação, de alguma forma, é a de que nosso passado nobre -com reis e vice-reis, barões, marqueses e fidalgos de toda sorte, travestidos de servidores públicos- ressurgiu, de repente, depois de décadas de recolhimento. A verdade, no entanto, é que essa herança histórica, colonial e imperial nos assombra desde sempre, como resquício mal deglutido, incompreendido, nebuloso. Veja-se, por exemplo, o caso do Congresso Nacional. Nas duas Casas legislativas -no Senado e na Câmara dos Deputados-, bem como nos Parlamentos estaduais e municipais, perdura, entre os congressistas, uma forma de tratamento antiquada e, por isso mesmo, das mais significativas: "o nobre senador", "o nobre deputado", "o nobre vereador". A que, exatamente, estarão "Suas Excelências" se referindo? "É a tradição, faz parte dos usos e costumes do Parlamento", alegarão alguns para justificar tanta nobreza. Certo. Mas tradições existem para serem modificadas -do contrário, os "nobres parlamentares" continuariam a se utilizar de uma indumentária cheia de rendas e babados, incluindo, quiçá, alvas e encaracoladas perucas, um bom punhado de talco e ruge e cheirariam rapé no meio das sessões legislativas... "Questão meramente semântica", objetarão outros. "Pouco importa a forma pela qual deputados e senadores se tratam entre si, o que conta é como agem." É de desconfiar, no entanto, que o alheamento que muitos de nossos "nobres parlamentares" vivem a demonstrar com relação aos anseios populares seja irmão gêmeo de sua atitude ensimesmada, mais de olho em interesses próprios de fidalgos do que nas aspirações nacionais. Como se a função pública -mesmo quando fruto do voto- fosse uma benesse, uma prebenda, um bem pessoal a ser usufruído sem nenhuma prestação de contas ao eleitor, sem respeito ao programa partidário e aos mandamentos constitucionais. Ainda bem que vivemos em uma República, em que quem governa é o presidente, com pleno funcionamento do Congresso Nacional. E, como todos sabemos, o chefe do Poder Executivo só legisla por meio de medidas provisórias em caso de relevância e urgência, como reza a Constituição, não é mesmo? Aqui não temos mais dom João, dom Pedro ou dom José, tampouco dom Fernando, nem sequer dom Luiz. Quem elabora as leis é o Congresso livre, formado por "Suas Excelências", os "nobres parlamentares", legítimos representantes do povo. É deste, diga-se, que emana todo o poder, como, aliás, estabelece a Constituição Cidadã, já no artigo primeiro. Há quem diga que nos faltou uma revolução popular, como ocorreu na França, ou uma verdadeira guerra de independência, a exemplo da norte-americana, para dar cabo de um passado aristocrático, que continua nos atando a uma realidade anacrônica, com seu viés autoritário e antidemocrático. Nossa República é fruto de um golpe de Estado; de fato, a corte passou bem longe da guilhotina, da forca e dos fuzis. De outro lado, haverá quem possa argumentar que a Inglaterra ou a Espanha, sem falar no Japão, países ditos adiantados, são monarquias constitucionais e que, ali, todo título de nobreza integra o poder, com naturalidade. É verdade. Como é verdade, também, que somos (em tese) uma República e que, portanto, não temos mais (em tese) monarcas nem nobres. É de notar que, também no exercício de diversas funções públicas, mesmo quando legitimadas por concurso, continua imperando a atitude soberba e fidalga de muitas "Excelências", mais apegadas à liturgia do cargo do que às demandas da cidadania. Há nesses casos, também, resquícios de um passado aristocrático, quando os funcionários eram nomeados ao bel-prazer dos poderosos, um misto de sinecura e compartilhamento da riqueza a serviço do governante de plantão e de seus asseclas -fato até bem recentemente observado em muitas carreiras que nem sequer tinham concurso público. Ainda hoje não faltam servidores (serviçais?) sempre ávidos por usufruir das lambanças públicas (privadas?). Sem falar nos cargos de confiança que tanta desconfiança geram, em um triste espetáculo de avidez pelo bem comum. Tradição e passado devem servir à compreensão histórica, não para justificar a repetição perpétua de (maus) hábitos. Afinal, o que é mais nobre, Excelências: servir aos poderosos e a si mesmos ou, ao contrário, servir ao povo? Uma coisa é certa: há pouca participação popular em nossa democracia. Sobra nobre. Falta povo.
CÁSSIO SCHUBSKY , 43, formado em direito pela USP e em história pela PUC-SP, é editor e historiador. Artigo publicado na Folha de hoje.
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