Assisti ontem ao último filme do Quentin Tarantino, Bastardos Inglórios. Vou comentar depois. A ZH de hoje traz dois pontos de vista sobre Tarantino e seu último filme. O primeiro é de Luiz Augusto Fischer.
A truculência narrativa em busca de uma causa
Abril de 1995: fui assistir a Pulp Fiction, de Quentin Tarantino. O diretor vinha de um relativo sucesso com outro filme em que uma de suas marcas, a violência grosseira, já mostrava a ponta da aspa; em Pulp Fiction entrava em ação outra camada expressiva, mais ao gosto do freguês culto ou semiculto, composta de alusões a estilos narrativos anteriores, numa rodada a mais daquilo que então estava na moda universitária e midiática e que vinha de se chamar “pós-modernismo”.Fui ver aquele filme e me incomodei; escrevi então para a Zero Hora um texto indignado, dizendo que Tarantino excitava a plateia mas não levava adiante a energia convocada, numa operação que me parecia resultar em nada, ou pior, era uma pirotecnia a serviço do narcisismo ululante de nossos tempos – aqueles, mas também estes aqui –, uma canalhice com o espectador que, emprestando ao filme o que ele tem de melhor (sua subjetividade, sua atenção ao mundo, sua vontade de entender o que se passa), recebia de volta um muxoxo, uma piada grosseira.No fundo, aliás, minha crítica ao Tarantino era a mesmíssima que Machado de Assis fez ao Eça de O Primo Basílio. Assim como o mestre brasileiro, eu também fico indignado com personagens fracos, com inconsistência por assim dizer anímica de uma narrativa (filme ou romance, tanto faz) e, mais ainda, com apelação grossa. Não tenho nada contra cena de sexo ou figuração de violência: minha questão é o que o autor faz com isso dentro de sua história, de que modo captura a força da cena para compor o drama e com isso compartilhar com o espectador/leitor aquilo que vale a pena – nossa condição humana, nossas incertezas, nosso desejo. Só isso. Tudo isso.Pois agora, em Bastardos Inglórios, Tarantino é o mesmo em procedimento narrativo, mas é outro na matéria que aborda. Ao contrário do quase anódino enredo de Pulp Fiction, aqui ele conta com a força da história, o nazismo na França ocupada, nada menos que isso e tudo que isso implica, como a nunca totalmente resolvida e sempre tortuosa culpa da comunidade judaica em haver sucumbido à truculência, em não haver sido suficientemente heroica, num circuito aporístico que não encontra elaboração nem paradeiro final. Agora, com um roteiro excelente – em que as peripécias estridentes que continua praticando se colocam a serviço de uma questão extraformal, quer dizer, histórica mesmo – e surfando no ótimo ritmo narrativo, o já calejado Tarantino encontra uma síntese muito interessante.Não é apenas porque mobiliza sua truculência narrativa contra o nazismo, um inimigo que continua a merecer combate, mas também por isso, seu filme permite uma empatia que transforma o espectador num aliado, ainda não tratado como adulto emocional (o diretor ainda nos pega pelo fígado, não pela mente ou pelo coração), mas ao menos considerado como alguém que pode medir suas emoções com as do filme e as da vida real. (De quebra, oferece um altar muito eloquente para aquela tortuosa culpa: se na vida real houve alguma covardia, o filme oferece uma expiação simbólica radical naquele comando homicida composto só por soldados judeus, mais o caipira simplório que os comanda.)Agora, aquela violência final em que rolos de filmes, a sala do cinema e centenas de nazistas pegam fogo, estará ela sugerindo que o cinema precisa se imolar para poder dizer o que precisa ser dito? A história, na visão de Tarantino, só encontrará sua purgação contra a arte de massas? Será que quando a violência está a serviço da boa causa deve ser não apenas perdoada mas também saudada? Acaso aquele filme do exemplar soldado nazista, que está estreando no cinema parisiense dramatizado no filme de Tarantino, não foi também saudado como bom e justo pelos que apoiavam Hitler? Haverá diferença substantiva entre eles e nós, ou entre Leni Riefenstahl e, digamos, Quentin Tarantino, então? Boas perguntas, boa matéria para nova polêmica.
Abril de 1995: fui assistir a Pulp Fiction, de Quentin Tarantino. O diretor vinha de um relativo sucesso com outro filme em que uma de suas marcas, a violência grosseira, já mostrava a ponta da aspa; em Pulp Fiction entrava em ação outra camada expressiva, mais ao gosto do freguês culto ou semiculto, composta de alusões a estilos narrativos anteriores, numa rodada a mais daquilo que então estava na moda universitária e midiática e que vinha de se chamar “pós-modernismo”.Fui ver aquele filme e me incomodei; escrevi então para a Zero Hora um texto indignado, dizendo que Tarantino excitava a plateia mas não levava adiante a energia convocada, numa operação que me parecia resultar em nada, ou pior, era uma pirotecnia a serviço do narcisismo ululante de nossos tempos – aqueles, mas também estes aqui –, uma canalhice com o espectador que, emprestando ao filme o que ele tem de melhor (sua subjetividade, sua atenção ao mundo, sua vontade de entender o que se passa), recebia de volta um muxoxo, uma piada grosseira.No fundo, aliás, minha crítica ao Tarantino era a mesmíssima que Machado de Assis fez ao Eça de O Primo Basílio. Assim como o mestre brasileiro, eu também fico indignado com personagens fracos, com inconsistência por assim dizer anímica de uma narrativa (filme ou romance, tanto faz) e, mais ainda, com apelação grossa. Não tenho nada contra cena de sexo ou figuração de violência: minha questão é o que o autor faz com isso dentro de sua história, de que modo captura a força da cena para compor o drama e com isso compartilhar com o espectador/leitor aquilo que vale a pena – nossa condição humana, nossas incertezas, nosso desejo. Só isso. Tudo isso.Pois agora, em Bastardos Inglórios, Tarantino é o mesmo em procedimento narrativo, mas é outro na matéria que aborda. Ao contrário do quase anódino enredo de Pulp Fiction, aqui ele conta com a força da história, o nazismo na França ocupada, nada menos que isso e tudo que isso implica, como a nunca totalmente resolvida e sempre tortuosa culpa da comunidade judaica em haver sucumbido à truculência, em não haver sido suficientemente heroica, num circuito aporístico que não encontra elaboração nem paradeiro final. Agora, com um roteiro excelente – em que as peripécias estridentes que continua praticando se colocam a serviço de uma questão extraformal, quer dizer, histórica mesmo – e surfando no ótimo ritmo narrativo, o já calejado Tarantino encontra uma síntese muito interessante.Não é apenas porque mobiliza sua truculência narrativa contra o nazismo, um inimigo que continua a merecer combate, mas também por isso, seu filme permite uma empatia que transforma o espectador num aliado, ainda não tratado como adulto emocional (o diretor ainda nos pega pelo fígado, não pela mente ou pelo coração), mas ao menos considerado como alguém que pode medir suas emoções com as do filme e as da vida real. (De quebra, oferece um altar muito eloquente para aquela tortuosa culpa: se na vida real houve alguma covardia, o filme oferece uma expiação simbólica radical naquele comando homicida composto só por soldados judeus, mais o caipira simplório que os comanda.)Agora, aquela violência final em que rolos de filmes, a sala do cinema e centenas de nazistas pegam fogo, estará ela sugerindo que o cinema precisa se imolar para poder dizer o que precisa ser dito? A história, na visão de Tarantino, só encontrará sua purgação contra a arte de massas? Será que quando a violência está a serviço da boa causa deve ser não apenas perdoada mas também saudada? Acaso aquele filme do exemplar soldado nazista, que está estreando no cinema parisiense dramatizado no filme de Tarantino, não foi também saudado como bom e justo pelos que apoiavam Hitler? Haverá diferença substantiva entre eles e nós, ou entre Leni Riefenstahl e, digamos, Quentin Tarantino, então? Boas perguntas, boa matéria para nova polêmica.
LUÍS AUGUSTO FISCHER
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