"Eu fui convocada. Quinta-feira, dez em ponto.
Sou convocada cada vez com maior freqüência: às dez em ponto na quinta, às dez em ponto no sábado, na quarta ou na segunda. Como se os anos fossem uma semana, fico imaginando que depois do fim de verão logo teremos outra vez inverno.
No trajeto até o bonde os arbustos voltam a emergir através das cercas, com suas frutinhas brancas. Como botões de madrepérola costurados embaixo, talvez até terra adentro, ou como migalhas de pão. Para cabecinhas de pássaros com bicos tortos, as frutinhas são pequenas demais, mesmo assim penso em cabeças de pássaros brancos. E isso dá vertigem. Prefiro pensar em flocos de neve no capim, mas aí a gente se perde, e pensar em giz nos dá sono.
O bonde não tem horários fixos.
Penso que é ele que chega rumorejando, se não forem os choupos com suas folhas duras. Está chegando, o bonde, e hoje me levará logo. Estou decidida a deixar o velho de chapéu de palha embarcar na minha frente. Quando cheguei ele já estava na parada, sabe lá fazia quanto tempo. Não parece frágil, mas é magro como sua sombra, meio corcunda, e abatido. Não tem bunda para encher os fundilhos, nem quadris, só os joelhos marcam a calça. Mas se no exato momento em que a porta do bonde se abrir ele resolver escarrar no chão, eu embarco antes dele. Quase todos os assentos estão livres, ele os examina com o olhar e fica de pé.
Como é que gente tão velha não fica cansada e insiste em ficar de pé mesmo quando se pode sentar. Às vezes, ouvimos os velhos dizerem: Já vamos ficar deitados tempo suficiente no cemitério. Mas nem estão pensando em morrer, e têm razão. Não há uma ordem fixa, jovens também morrem. Sempre que não preciso ficar de pé, eu me sento. Viajar sentado é como caminhar sentado. O homem me examina, é fácil perceber isso no carro vazio. Hoje estou sem vontade de conversar, senão perguntaria o que é que ele vê em mim. Nem se apercebe que seu olhar me incomoda. Lá fora passa metade da cidade, alternando-se entre árvores e casas. Dizem que gente de idade sente mais do que pessoas jovens. Talvez ele até perceba que hoje tenho na bolsa uma toalhinha de rosto e pasta de dentes, além de uma escova. Mas nada de lenço, pois não pretendo chorar. Paul nem percebeu como eu estava com medo de que hoje Albu pudesse me levar para a cela debaixo do seu gabinete. Eu não lhe disse nada; se acontecer, ele vai saber logo. O bonde anda devagar. O chapéu de palha do velho tem uma fita manchada, provavelmente de suor ou chuva. Como sempre, Albu vai me saudar com um beijo na mão molhado de cuspe.
O major Albu pega minha mão nas pontas dos dedos e aperta tanto minhas unhas que quase solto um grito. Beija meus dedos com o lábio inferior, o superior fica livre para poder falar. Sempre beija minha mão do mesmo jeito, mas ao falar, cada vez diz uma coisa diferente:
Ora, ora, hoje seus olhos estão inflamados.
Parece que você está ficando com buço, meio cedo na sua idade.
Ora, hoje a mãozinha está gelada, espero que não sejam problemas de circulação.
Ora, ora, sua gengiva está murchando como se você fosse a sua avó.
Minha avó não envelheceu, eu digo, ela nem teve tempo de perder os dentes.
Sou convocada cada vez com maior freqüência: às dez em ponto na quinta, às dez em ponto no sábado, na quarta ou na segunda. Como se os anos fossem uma semana, fico imaginando que depois do fim de verão logo teremos outra vez inverno.
No trajeto até o bonde os arbustos voltam a emergir através das cercas, com suas frutinhas brancas. Como botões de madrepérola costurados embaixo, talvez até terra adentro, ou como migalhas de pão. Para cabecinhas de pássaros com bicos tortos, as frutinhas são pequenas demais, mesmo assim penso em cabeças de pássaros brancos. E isso dá vertigem. Prefiro pensar em flocos de neve no capim, mas aí a gente se perde, e pensar em giz nos dá sono.
O bonde não tem horários fixos.
Penso que é ele que chega rumorejando, se não forem os choupos com suas folhas duras. Está chegando, o bonde, e hoje me levará logo. Estou decidida a deixar o velho de chapéu de palha embarcar na minha frente. Quando cheguei ele já estava na parada, sabe lá fazia quanto tempo. Não parece frágil, mas é magro como sua sombra, meio corcunda, e abatido. Não tem bunda para encher os fundilhos, nem quadris, só os joelhos marcam a calça. Mas se no exato momento em que a porta do bonde se abrir ele resolver escarrar no chão, eu embarco antes dele. Quase todos os assentos estão livres, ele os examina com o olhar e fica de pé.
Como é que gente tão velha não fica cansada e insiste em ficar de pé mesmo quando se pode sentar. Às vezes, ouvimos os velhos dizerem: Já vamos ficar deitados tempo suficiente no cemitério. Mas nem estão pensando em morrer, e têm razão. Não há uma ordem fixa, jovens também morrem. Sempre que não preciso ficar de pé, eu me sento. Viajar sentado é como caminhar sentado. O homem me examina, é fácil perceber isso no carro vazio. Hoje estou sem vontade de conversar, senão perguntaria o que é que ele vê em mim. Nem se apercebe que seu olhar me incomoda. Lá fora passa metade da cidade, alternando-se entre árvores e casas. Dizem que gente de idade sente mais do que pessoas jovens. Talvez ele até perceba que hoje tenho na bolsa uma toalhinha de rosto e pasta de dentes, além de uma escova. Mas nada de lenço, pois não pretendo chorar. Paul nem percebeu como eu estava com medo de que hoje Albu pudesse me levar para a cela debaixo do seu gabinete. Eu não lhe disse nada; se acontecer, ele vai saber logo. O bonde anda devagar. O chapéu de palha do velho tem uma fita manchada, provavelmente de suor ou chuva. Como sempre, Albu vai me saudar com um beijo na mão molhado de cuspe.
O major Albu pega minha mão nas pontas dos dedos e aperta tanto minhas unhas que quase solto um grito. Beija meus dedos com o lábio inferior, o superior fica livre para poder falar. Sempre beija minha mão do mesmo jeito, mas ao falar, cada vez diz uma coisa diferente:
Ora, ora, hoje seus olhos estão inflamados.
Parece que você está ficando com buço, meio cedo na sua idade.
Ora, hoje a mãozinha está gelada, espero que não sejam problemas de circulação.
Ora, ora, sua gengiva está murchando como se você fosse a sua avó.
Minha avó não envelheceu, eu digo, ela nem teve tempo de perder os dentes.
Essa Hertha Müller não é uma mulher exótica?
Trecho do livro "O compromisso" (no original, "Wär ich mir lieber nicht begegnet") da escritora Herta Müller, vencedora do prêmio Nobel de Literatura em 2009. A obra foi lançada em 2004, pela editora Globo. No romance, a escritora romena radicada na Alemanha retorna ao passado e às suas próprias experiências para retratar as adversidades e humilhações por que passou na Romênia comunista onde viveu de 1953 até 1987. Sob um regime repressor, a delação se tornou uma instituição extra-oficial e a confiança no próximo, uma raridade. "O compromisso" acompanha a rotina de uma ex-operária da indústria têxtil que é interrogada pelo major Aldu, da polícia secreta da Romênia, durante o regime totalitário de Nicolae Ceausescu (1918-1989), que governou o país entre 1974 e 1989. A personagem é suspeita de trair a pátria desde que foram descobertos bilhetes enfiados nos bolsos das calças de ternos masculinos que ela costurou e que seriam enviados para a Itália. Leia a seguir um trecho do romance, traduzido do alemão pela escritora Lya Luft
Trecho do livro "O compromisso" (no original, "Wär ich mir lieber nicht begegnet") da escritora Herta Müller, vencedora do prêmio Nobel de Literatura em 2009. A obra foi lançada em 2004, pela editora Globo. No romance, a escritora romena radicada na Alemanha retorna ao passado e às suas próprias experiências para retratar as adversidades e humilhações por que passou na Romênia comunista onde viveu de 1953 até 1987. Sob um regime repressor, a delação se tornou uma instituição extra-oficial e a confiança no próximo, uma raridade. "O compromisso" acompanha a rotina de uma ex-operária da indústria têxtil que é interrogada pelo major Aldu, da polícia secreta da Romênia, durante o regime totalitário de Nicolae Ceausescu (1918-1989), que governou o país entre 1974 e 1989. A personagem é suspeita de trair a pátria desde que foram descobertos bilhetes enfiados nos bolsos das calças de ternos masculinos que ela costurou e que seriam enviados para a Itália. Leia a seguir um trecho do romance, traduzido do alemão pela escritora Lya Luft
Pescado da Globo.
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