Diversidade, Liberdade e Inclusão Social

Foto: Obama, Cameron e Helle Thorning-Schmidt


quinta-feira, 28 de outubro de 2010

A Morte do Caudilho do Século XXI




Néstor Kirchner, um caudilho para o século 21, que não está mais aqui

Néstor Kirchner foi um homem impossível de classificar. Chegou ao poder em pleno apogeu na América do Sul de presidentes como o brasileiro Lula da Silva, o uruguaio Tabaré Vázquez ou o venezuelano Hugo Chávez. E, embora às vezes tomasse decisões que se inscreviam na esquerda moderada representada pelos dois primeiros, não tinha problemas para alinhar-se com o eixo bolivariano mais radical.

Em um mesmo discurso, Kirchner era capaz de misturar enunciados de Milton Friedman e de Ho Chi Minh sem mudar de tom. Seu grande motor, para o bem e para o mal, foi a paixão. Talvez por ser filho de uma mulher profundamente católica e ter crescido na ventosa imensidão da Patagônia, Kirchner invocou a paixão de Cristo para explicar seu projeto político: "Estamos saindo passo a passo da pior crise que vivemos, do que foi e ainda é o calvário da Argentina", disse diante do Congresso em 2005.

O ex-presidente jamais perdoou as meias tintas de seus colaboradores mais próximos nem admitiu fissuras na Frente para a Vitória, seu grupo dentro da família peronista. Uma pessoa muito próxima dele definiu uma vez o farol que guiava o político: "O poder é consenso e autoridade, e Kirchner só aceitava negociar depois de ter imposto sua autoridade e contar com o apoio das pessoas". O ex-presidente sabia que ser o centro de tudo era vital para sua sobrevivência política.

Se na história da Argentina, desde a independência, há 200 anos, o poder se dividiu entre nacionalistas (de direita ou de esquerda) e liberais (conservadores ou progressistas), Kirchner definitivamente se encaixava no primeiro grupo. Era um caudilho de seu partido, o peronista, como não poderia ser de outro modo para exercer e manter o poder.

Kirchner enquadrou-se perfeitamente no perfil do caudilho nacionalista, progressista e defensor fervoroso da intervenção do Estado na economia. De fato, foi o homem que devolveu o conceito de Estado à Argentina depois do desmantelamento do aparelho público durante a década de 1990. "Vamos devolver ao Estado os neurônios que lhe tiraram", declarou em várias ocasiões o ex-presidente no início de seu mandato em 2003.

"Facundo"

Para seus críticos, o ex-mandatário representava a tradição autoritária descrita por Domingo Faustino Sarmiento em seu célebre livro "Facundo", que descreve a vida de Juan Facundo Quiroga, governador e caudilho da província de La Rioja durante as guerras civis argentinas.

O caudilho é produto da imensidão da planície argentina e da força bruta - e autoridade sem limites - que ali predominam. Como o grosso dos peronistas de esquerda, Néstor Kirchner militava, e sua viúva, Cristina Fernández de Kirchner, ainda o faz, na corrente historiográfica que postula o caudilho - neste caso encarnado na figura de Juan Manuel de Rosas, o principal dirigente da chamada Confederação Argentina (1835-1852) - como o herói nacional oposto aos interesses oligárquicos.


Esta visão da história sustenta que a América Latina entrou em decadência quando se abriu para o mercado internacional e adotou os padrões econômicos reconhecidos no mundo desenvolvido. Ao mesmo tempo, condena muitos intelectuais como "traidores da pátria", isto é, por serem favoráveis aos interesses estrangeiros contra os nacionais. O revisionismo esteve muito presente no discurso da presidente Cristina Kirchner durante as comemorações dos bicentenários das independências argentina e venezuelana, durante este ano.

Embora com a queda do governo de Perón o revisionismo tenha sido duramente perseguido, o movimento sobreviveu e inclusive foi muito prolífico em textos e ensaios até o golpe de Estado de 1976. Sem dúvida, Kirchner se embebeu dessa corrente, dos livros de Raúl Scalabrini Ortiz, de Arturo Jauretche e de José María Rosa. O ex-presidente reverteu as privatizações, rompeu com o Fundo Monetário Internacional e apoiou "o nosso" acima de tudo. Um caudilho para o século 21, que não está mais aqui.

Matéria do Jornal Espanhol El Pais de hoje.

Um comentário:

Fábio Mayer disse...

Kirchner para mim, foi apenas mais um populista latino-americano.

Merece homenagens como qualquer ex-presidente, salvo os ditadores. Mas não é um mito.

E agora, inicia-se de verdade o governo Cristina Kirchner.