Diversidade, Liberdade e Inclusão Social

Foto: Obama, Cameron e Helle Thorning-Schmidt


terça-feira, 3 de junho de 2008

Até o Dia em que o Cão Morreu - Daniel Galera


E então lá estava o meu antigo quarto, no mesmo estado em que eu o havia abandonado tantos meses antes. O mesmo material sobre a escrivaninha, os móveis na posição de sempre, o videogame empoeirado debaixo da TV, uma extensão do telefone próxima à cabeceira da cama. O que me repelia tanto nisso tudo, mesmo? Eu já tinha esquecido. Agora eram objetos inofensivos, nem bons nem maus, eram apenas inúteis. Não mudei nada. Apenas reacomodei meus livros em suas prateleiras e tirei um poster do Led Zeppelin da parede pra colocar o quadro que Seu Elomar pintara pra a Marcela.
Foram dias esquisitos. Na tentativa desesperada de me ocupar, retomei o hábito de ler. Lia pelo menos quatro ou cinco horas por dia, e depois ia pro computador do escritório, ver putaria na internet. Lentamente, comecei a escrever o esboço de um projeto prum mestrado em Literatura Comparada. Mas não adiantava ter pressa, ainda faltavam alguns meses pro início do prazo de inscrições na Universidade Federal. Telefonei pra velhos professores e encontrei um que estava disposto a me orientar. Nas horas mais vazias, eu caminhava sem objetivo pela Ipiranga, fumando e tentando ter alguma idéia. Nos primeiros dias, o cachorro me seguia, acompanhávamos um ao outro, num transe semelhante. Era a companhia ideal pra mim. Total ausência de palavras. Apenas alguns olhares cúmplices, e mais nada. Assim como ele, eu só queria me adaptar à civilização na medida em que isso era necessário à minha sobrevivência.
Depois de três semanas, consegui um emprego, novamente como professor de inglês num cursinho desses pra adolescentes. O trabalho só começaria na semana seguinte, então tive mais alguns dias de ócio pela frente. Aos poucos, recomecei a ver televisão. Agora existia até mesmo um canal chamado Canal do Boi, que ficava alternando imagens de bovinos e informações sobre datas de leilões agropecuários, embaladas por melodias new age ao fundo. De vez em quando entrava o depoimento de algum veterinário, como propaganda prum determinado remédio. Aluguei DVDs de clássicos que eu nunca tinha visto. Permanecia uma hora inteira mergulhado dentro da banheira, escutando música, até a água ficar fria. E especialmente ali, dentro da água, eu me sentia cansado. Velho, em certo sentido. No sentido de que era tarde demais pra morrer jovem."
Trecho pescado da internet da obra de Daniel Galera que foi adaptada ao filme de Beto Brant, Cão sem Dono.

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