Dois artigos sobre Dona Ruth.
O primeiro de Clóvis Rossi na Folha de hoje.
Ruth e a Soberania
O melhor resumo-homenagem a Ruth Cardoso está na carta da dramaturga Consuelo de Castro, publicada pelo "Painel do Leitor". Fala das aulas de antropologia e política dessa notável intelectual e fala, "sobretudo, do seu jeito soberano de encarar a vida". A própria Ruth reforçou esse "jeito soberano" de ser em uma frase que a Folha pinçou como uma espécie de legenda para a foto dela. Dizia: "Se tiver idéia diferente, eu expresso. Não tenho a mesma posição política só por ser casada". Num país em que há, ainda, o primitivo raciocínio que faz da mulher mera extensão do homem (ou vice-versa, em tempos mais modernos), é todo um manifesto de soberania. Dupla soberania: a de pensar com a própria cabeça e a de não ajustar convicções a conveniências. No plano micro, ultramicro, coube-me testemunhar uma cena explícita de "soberania". No início do governo Fernando Henrique Cardoso, em 1995, ele, a mulher e a comitiva de praxe fizeram visita oficial à Bélgica, que incluiu palestra no Colégio da Europa, em Bruges. Foi a primeira cidade, quando era Estado independente, a adotar a renda mínima, no remoto século 16 (exatamente 1526). O casal visitou um museu, como procurava fazer sempre que possível. Pararam ante um quadro que mostrava um camponês recebendo um pão. FHC comentou: "Olha aí a renda mínima". Ruth, com seu jeitão despachado, fulminou: "Que renda mínima, isso é assistencialismo puro". O presidente calou-se, e a visita seguiu. Passaram-se 13 anos, dois mandatos de FHC e um e meio de Lula, talvez os dois governantes de mais sensibilidade social entre todos os presidentes, tanto que construíram um embrião de rede de proteção social. Dói, no entanto, que Ruth Cardoso não tenha sobrevivido para ver quebrado o assistencialismo.
O segundo de Augusto de Franco, também da Folha de hoje.
Ruth
A HISTÓRIA não anda para a frente. Aliás, ela não vai para lugar nenhum. Nós é que vamos. Ou não vamos. No final de 1999, o responsável pelas relações do Banco Mundial com a sociedade civil, freqüentador assíduo de nossas atividades, me dizia, num restaurante no aeroporto do Galeão, que Ruth fazia um trabalho extraordinário, mas não seria bem compreendida porque estava dez anos à frente da sua época. O que diria ele agora, quando depois de Ruth fomos parar em algum lugar do passado, 20 anos atrás? A morte não tem sentido. A menos aquele que os vivos lhe emprestamos. É uma característica dessa qualidade da alma que chamamos humanidade buscar na morte um sentido para a vida. Eis a origem do elogio fúnebre. No passamento de Ruth vejo o sentido daquelas coisas que não quero que passem: o apego à força da verdade e a rejeição a qualquer forma de manipulação do outro, sobretudo as formas hierárquicas de poder que exigem obediência. Em quase uma década de convivência, Ruth jamais nos disse, a nós, que trabalhávamos com ela como conselheiros da Comunidade Solidária, o que deveríamos fazer. Nunca tomou uma decisão em assuntos nos quais estivéssemos envolvidos sem antes nos consultar. Recusava o mando, o controle que transforma colaboradores em objetos ou em instrumentos de qualquer propósito pessoal ou coletivo de que não compartilhassem como pares, sempre como iguais. Curiosamente, era fácil irritá-la. Bastava elogiá-la para tentar captar-lhe a confiança com vistas a obter dela algum favor ou benefício. Bastava, aliás, chamá-la de primeira-dama. Se começasse assim, o interlocutor já podia desistir do seu intento. Nossa professora o desqualificaria antes mesmo da prova. Por sua banca pessoal não passavam os interesseiros. Ruth conseguia promover essa unidade, estranha para muitos nos tempos que correm, entre vida pessoal e vida política. Embora nunca tenha misturado a esfera privada com a pública, era sempre a mesma pessoa, estivesse numa recepção palaciana a um chefe de Estado, conversando com agricultores no São Francisco ou almoçando conosco, seus parceiros, em um restaurante em São Paulo. Mas tinha opinião, ah!, isso ela tinha. Não acreditava no velho sistema político que agora se derrama em exaltações póstumas. Durante os oito anos da Comunidade Solidária, jamais vi na sua agenda aqueles célebres atendimentos clientelistas a parlamentares, nem mesmo aos do partido do marido. Sei bem, pois minha sala ficava ao lado da sua. Seu comportamento inédito causava irritação, é óbvio, mas a serenidade e a firmeza moral que emanavam de seus gestos e atitudes desestimulavam qualquer protesto. E ela em privado ria à solta quando vinham lhe dizer que um deputado, senador ou dirigente partidário tentou apadrinhar ou aparelhar algumas das ações que promovíamos. Ruth era suave, tinha aquele poder "doce" que os velhos alquimistas percebiam na natureza, mas era também muito crítica, inclusive em relação ao governo Fernando Henrique, ao qual, aliás, nunca pertenceu formalmente. Quando dizíamos isso, as pessoas não acreditavam: mas como? Ela não é a mulher do presidente? Como se o fato de ser esposa do governante a tornasse também uma funcionária do governo: o que não era, nem nunca auferiu nenhuma remuneração por seu trabalho. Fosse diferente a relação que nossa cultura ocidental estabeleceu com a morte, seria melhor reconhecer que a experiência humana que presenciamos sob o nome de Ruth Corrêa Leite Cardoso foi uma vida realizada e emprestar-lhe um sentido para a caminhada que continuamos do que lamentar o seu desaparecimento. Claro, todos nós sentimos a perda, que, a mim, em particular, me afeta profundamente, depois de dez anos de trabalho conjunto, muitos diálogos e convivência praticamente cotidiana. Dez anos não são dez dias. A gente sofre porque é como se perdesse uma parte do próprio corpo. Mas Ruth cumpriu bem seu tempo nesta terra, com elegância e, mais do que isso, com sublimidade. Sofreu, sim, nos últimos anos, ao assistir ao derruimento sistemático das bases de um novo padrão de relação entre Estado e sociedade que tanto se esforçou por construir. Passou-se a tempo de não sofrer mais. Foi poupada do que ainda virá. Pobres de nós, que teremos de agüentar sozinhos, por muito tempo ainda, todos os efeitos associados à volta regressiva de um passado do qual ela quis se desvencilhar.
AUGUSTO DE FRANCO , 57, escreve no blog 24 horas ( www.vintequatro.com ) e é autor, entre outros livros, de "Alfabetização Democrática" (2007). Foi conselheiro e, com Ruth Cardoso, integrou o Comitê Executivo do Conselho da Comunidade Solidária durante o governo Fernando Henrique (1995-2002
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